Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 26 (ou 26ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora - Se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente - Antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

***

Segunda-feira. Minha vizinha ficou doente. Ela acha que tá com o vírus, porque tá cheia de desvontades, sem entusiasmo pra comer, beber, conversar...

Mas os médicos dizem que é psicossomático, que Piti na verdade tá jogando pro físico dela os traumas do sanatório.

Eu não sei no que acreditar, porque esses terapeutas daqui... vou te contar... até hoje tentam me persuadir de que ela, Sandra e eu somos uma só!

Fato é que Piti não quer mais sair do quarto, que aliás tá menos alegre, menos colorido, porque ela andou guardando os adornos — memórias das andanças pelo mundo, principalmente.

Queria empacotar também os porta-retratos, mas não deixei, porque seria demasiada desistência, que é o mal dela, segundo os médicos.

Aí, tive uma ideia!

Sandra foi repórter, não sei se vocês sabem. E me convenceu de que toda e qualquer notícia pode ser dada por um viés positivo, porque tudo tem um lado bom.

(falava que nem minha pintassilga...).

Então, pensei em narrar a vida contemporânea do sanatório pra Piti, mas numa perspectiva otimista, com final feliz!

Me acusou de querer aplicar gaslighting nela e me expulsou do quarto...

***

Terça-feira. Fui perguntar a Sandra o que é gaslighting, mas em vez de explicar, me veio com uma história mais enrolada do que linha em carretel.

Disse que era uma técnica, e que pra eu entender, bastava pensar em quem fui e em quem me tornei; no que o país era e no que se transformou...

Resumo da ópera: tive eu mesma que pesquisar.

O termo vem de uma peça do dramaturgo inglês Patrick Hamilton, “Gas light” — em tradução literal, “luz a gás”.

E a história, que virou filme, estrelado por Ingrid Bergman, é sobre um homem que tenta convencer a esposa de que ela é louca, manipulando pequenos elementos de seu ambiente — e negando a manipulação, claro.

Entre outras táticas, o marido escurece, proposital e sutilmente, as luzes (a gás) da casa. Ela percebe a inconstância da iluminação, mas ele a convence de que é coisa da mente dela...

Pior é que a tática não é usada só contra esse ou aquele indivíduo — contra grupos também, omitindo fatos, inventando acontecimentos, difundindo informações distorcidas...

Isso, pra fazer as vítimas duvidarem da própria percepção, memória, e, em última instância, sanidade.

O fenômeno eu entendi.

Mas o que isso tem a ver comigo e com o sanatório...

Você entendeu?

***

Quarta-feira. Piti se tocou da estupidez que fez comigo, veio me pedir desculpas e concordou com a terapia!

Como sou do tipo que tem vontade de bater em alguém e um segundo depois quer beijar esse alguém, não me fiz de rogada, e comecei a contação de história.

— Era uma vez um planeta mergulhado numa crise sanitária sem precedentes...

— Sem precedentes, não. Sem precedentes é o despreparo dos políticos, porque teve peste bubônica, gripe espanhola...

Ia dizer sem precedentes nesse século, porque aquela pandemia de 2009 foi fichinha comparada à de agora, né?

— Certo, deixa pra lá, a questão é...

— Deixa pra lá, não, porque a questão mais importante é que os precedentes foram inúteis, ninguém aprendeu bulhufas.

— Tá! Era uma vez um planeta mergulhado numa crise sanitária com precedentes que não adiantaram de nada, porque ninguém aprendeu nada e as autoridades ficam girando de um lado pro outro tão atarantadas quanto ratazanas de laboratório sem insulina no cérebro...

Tornou a interromper, reclamando que eu tava sendo repetitiva.

Como vi que ela não ia desistir de me fazer desistir, quem desistiu fui eu.

Tasquei o spray de álcool em gel no espelho dela e sumi!

Ou será que tasquei foi nela?

Agora fiquei preocupada...

***

Quinta-feira. Dessa vez, eu é que acordei de ressaca moral. Aí, fui pedir desculpas a Piti, mas quando entrei nos aposentos dela, vi que tava de dedo em riste pro enfermeiro de plantão, vomitando impropérios.

— Vocês constroem camisas de força pro pensamento, e quando não as vestimos, nos taxam de loucos, enquanto reproduzem a loucura normalizada do mundo!

Dei meia volta e saí de fininho, antes que me vissem...

Não quis me envolver na fixação de Piti pelo tal do gaslighting, mas passei o dia com Os Mutantes martelando minha cabeça.

— Dizem que sou louco / Por pensar assim [...] / Se eles têm três carros, eu posso voar [...] / Eu juro que é melhor / Não ser o normal / Se posso pensar que deus sou eu...

Dobrei a dose de anti-insurreissivos soníferos e fui dormir.

***

Sexta-feira. Não bastasse a angústia com Piti, Sandra chegou aqui hoje dizendo que tava doente!

Mas daí viu minha cara de aflição, e esclareceu que tava doente era de raiva, por causa de um bate-boca nas redes sociais sobre a expressão "lista negra".

E passou horas protestando contra o negacionismo da galera do sai-pra-lá-patrulha-humanista-feminista-antirracista...

— Acham tudo natural, como se palavras brotassem da terra ou do útero de alguém...

— Tá, mas...

— ...que não tivessem sido construídas, estando, portanto, impregnadas de valores, ideologias, intenções...

Tive que tascar anti-insurreissivo com meu spray na raiva dela...

Ou será que tasquei raiva na insurreição dela com meu spray?

Agora fiquei em dúvida...

Bem, mas o que importa é que um dia ela se convence, como me convenceram, de que lista negra quer dizer apenas lista suja; que mercado negro só significa mercado ilegal; que ovelha negra é pessoa inadequada; que denegrir é macular, manchar... nada mais...

Paranoia, achar que palavras escondem racismos, machismos e que tais.

Né?

***

Sábado. Passei o dia comigo e minhas saudades. Saudades da esperança; da brisa marinha; da alegria sem causa; da carícia das águas; de planejar o pra sempre; do sol na cabeça; da fé...

Saudades das pintassilgas — da minha e das que habitam (ou habitavam) em mim.

***

Domingo. Sonhei de novo que estava vagando num mundo estranho, pleno de desordem e insensatez, com claros indícios de exaustão dos modelos de Estado — e do meio ambiente.

Nele, a insanidade política e as condições climáticas estavam provocando grandes deslocamentos humanos; as epidemias grassavam; a fome, a miséria, e as violências alastravam-se de modo incontrolável, desfazendo os laços que diferenciam besta de gente.

A temperatura global aumentava num ritmo tal que o fim da vida parecia inexorável — isso, mesmo que a emissão do gás carbônico fosse eliminada; que os desmatamentos cessassem; que os políticos ganhassem consciência, enfim, que os esforços para barrar o superaquecimento lograssem êxito imediato.

E havia sinais por toda parte nos grandes aglomerados urbanos: florestas e cidades em chamas, gafanhotos gigantes devorando plantações, tsunamis, crateras enigmáticas, inundações, formigas voadoras, coronavírus...

Daí alguém perguntou se evitar a destruição do planeta, em tais condições, não seria utopia, e uma voz respondeu:

– Não. A desesperança foi construída. É possível desconstruí-la.

E eu acordei...

Bem... sonho é sonho.

Né?

(ou deveria dizer pesadelo é pesadelo?).

(porque hoje é domingo...)