Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 25 (ou 25ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora - Se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente - Antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

***

Segunda-feira. Toda segunda é isso. Sandra chega com um mau humor de doer, e fica me azucrinando com bobagens sobre política, democracia, direitos humanos...

Hoje tava fula da vida porque tinham postado em um de seus 365 grupos de Whatsapp que um desses políticos ilustres aí era muito egoísta, e era por causa do egoísmo dele que o sanatório tava na situação que tava.

E foi enumerando, indignada, os argumentos dos reclamantes contra o egocêntrico, que, segundo eles, deveria ter ficado preso caladinho, pra não prejudicar as eleições; deveria ter aceito a proposta de semiliberdade (mesmo tendo direito à liberdade), pra não detonar o sistema de justiça... e por aí vai.

Procurei contemporizar, pra ver se ela ficava menos nervosa, e disse que era uma discussão sobre o uso do bom senso...

Me deu um monte de beliscão e saiu cantarolando:

"Ele não gosta do bom gosto / Ele não gosta do bom senso / Ele não gosta dos bons modos / Não gosta / Ele gosta dos que têm fome"...

E o fooooooooome saiu desse jeitinho...

Muita besteira, né?

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Terça-feira. Contei que tão reabrindo os refeitórios do manicômio? Não contei, né? Mas estão, há um tempo, já.

Eu é que nem cogitava frequentar. Mas hoje me armei de coragem — o quer dizer de máscara cirúrgica, touca, protetor facial, luvas, botas, macacão impermeável... e fui tomar café.

A caminho, topei com minha vizinha — que aliás jurava que não tava saindo do quarto... só pra ir pro meu sem máscara!

Ela tava caminhando no sentido contrário e resmungando, resmungando...

Fingi que nem vi, porque não tenho a menor vontade de entabular conversa de manhã cedo...

Mas curiosidade mata, né?

Então, fui atrás e perguntei o que tava rolando. Ela abriu um sorrisão como se fosse dar a melhor notícia do mundo, e ficou cantando e dançando em minha frente:

— Tão fechandoo! Tão fechandoo! Tão fechandoo!

Não entendi o porquê da alegria...

Fiquei tão decepcionada! Logo hoje, que eu tinha superado a paúra, resolveram fechar de novo?

— Os hospitais de campanha, lerdeza!

Ahhhh!

Nossa, o vírus pode até estar dando alguma trégua, mas a estupidez de Piti...

Vou te contar, viu?

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Quarta-feira. Eu e um grupo de internas combinamos de compartilhar pelo zap ao menos uma boa notícia por semana, pra ver se a gente anima um pouco, porque a situação tá braba, né?

Quis ser logo a primeira, porque tinha visto uma reportagem sobre um homem que tava no mercado e, em meio ao frisson de gente comprando toneladas de arroz para estocar, levava um quilo só.

Foi tão marcante, a cena, que exibiram na TV, em horário nobre, como exemplo de responsabilidade social!

Mas eu nem tinha acabado de contar a história, quando certa pessoa cortou a mensagem e disse que o herói não passava de um pobre sem coronavaucher, comprando o que dava pra alimentar a mulher e os oito filhos...

Tá difícil, viu?

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Quinta-feira. Sandra tá que tá essa semana. Hoje, se pudesse, tinha batido num enfermeiro daqui, por causa das bobagens que um político andou falando sobre a mulher.

Algo do tipo só presta se for branca, alta, magra, tiver cabelo liso, não usar decote ou saia curta, for casada com homem, cativa do lar, caladinha, usar coleira com o nome do dono...

Protestou, protestou, mas não dei muita importância. Não sei nem quem é esse tal... não lembro... (quem elegeu ele mesmo?).

Mas justo na hora que a gente tava falando pelo Skype, o plantonista entrou no quarto e se meteu na conversa, dizendo que resgatar a “moralidade feminina” tinha um lado bom.

Pra quê?

Soltou os cachorros em cima dele (que-o-tempo-de-submissão-tinha-acabado; que-mulher não-era-propriedade-privada-de-ninguém, e coisa e tal).

Vi a hora de o trem descarrilar. O moço pegou a maleta de remédios, pôs debaixo do braço, deu dois passos na direção da tela do computador e ronronou.  

Nada, besta, é que mulher presa é sinônimo de homem solto...

Sandra engoliu em seco, ele saiu do quarto gingando e batendo os tamancos.

— sou gostoso sou gostoso sou gostoso sou gostoso...

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Sexta-feira. Minha irmã chegou aqui agitada, anunciando que a vacina contra o coronavírus ia finalmente sair!

Fiquei com pena de esfriar o entusiasmo dela, mas tive que ponderar que os testes da mais promissora, que era a de Oxford, tavam oscilando, no estilo senta, levanta; senta, levanta; tira o paletó, veste o paletó...

Mas ela argumentou que tinha surgido um dado que ia fazer com que uns cientistas que ela conhecia finalizassem o processo numa ligeireza maior do que bombardeiro soviético:

— Vai faltar dendê na Bahia!

Achei tão sem propósito, a relação entre os territórios soviético e baiano! Mas entendi que a razão da felicidade de Sandra era a vacina russa.

Daí, tive que interferir de novo, pra explicar que é a menos confiável...

Nem terminei de falar.

Me chamou de Rubinho Barrichello de saias e se moscou...

Quero dizer, se picou!

Tá difícil, aqui, ou não?

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Sábado. Fiquei horrorizada com uma notícia sobre a indústria de ovos, que mata 2,5 bilhões de pintos todo ano.

Isso porque pintos machos não põem ovos, portanto, são economicamente inviáveis pra esse tipo de comércio, logo, descartáveis...

Fui contar pra Piti, a malcriada me saiu com essa:

— Tudo dentro da normalidade neoliberal!

— Oi?

— Todos os dias gente “descartável” é deixada pra morrer de fome, de frio... A novidade dessa história é que os machos é que tão em desvantagem.

Oxe!

Comentário mais... mais... mais... sei lá eu...

Fingi que não ouvi.

Só tô registrando pra depois não pensarem que eu é que ando pensando essas raivosidades temerárias...

Entendeu?

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Domingo. Sandra chegou aqui contando que um apoiador... ou apoiado, sei lá eu, tinha metido o chefinho numa sinuca de bico.

A questão é que pra provar que as palmeiras da floresta pluvial do hospício não estavam em chamas, ele filmou o coqueiral de uma praia.

Até aí, tudo bem, porque marketing mato é mato, e é difícil distinguir a natureza de mais de cinquenta mil tons de verde.

Mas nem o subchefinho pra assuntos ambientais percebeu as ondas batendo nas pedras e a espuma branca saltando do rio azul e verde, cheio de algas...

— Então, não foi sinuca de bico, foi sinuca de mito!

Só não entendi o que ela achou de tão engraçado no que eu disse.

Em time de bronco, quem não paga mico não agrada o rei...

Não é óbvio?

(pisc).

(porque hoje é domingo...)