Cassiano Antico

Foi uma única palavra que ouvi: Viva! (e eu me perdoei)

 
Eu aprendi a andar; por conseguinte, corro. Eu aprendi a voar; por conseguinte, não quero que me empurrem
-- "Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém" / Friedrich Nietzsche
Foto: Luizclas/Pexels/Creative Commons

Por um longo período de minha existência eu era um ser por demais angustiado, arrependido das escolhas que havia feito e sabia ser o único responsável por tais escolhas.

Os dedos apontados sempre voltavam contra mim, como disparos quentes de armas mortais. Eu era fuzilado por mim mesmo e, muitas vezes, quis culpar o mundo.

E culpei a todos! A todos: sem exceção! Não consegui me sustentar em nenhuma filosofia alheia, fosse "sensivel ou intelegível" (como a de Platão), e nem num mundo onde "O inferno são os outros"; não fui capaz de me refugiar na montanha do Zaratustra de Nietzsche; senti muito frio e solidão.

E nem no silêncio absoluto de Buda, que era ensurdecedor e não tinha alegria e nem a fraternidade de Cristo.

Havia quebrado todas as prateleiras em que os filósofos e os burocratas travestidos de poetas colocam o nosso mundo, e eles o fazem com tanta propriedade e austeridade, né?

Mas eu vivia no escuro, no caos. Estava em queda livre no abismo que eu mesmo criei. Eu me angustiava, pois sou (e era) o único responsável por mim e por minhas ações. O homem é a escolha de si mesmo. Tinha certeza disso e de que somente eu poderia fazer algo por mim. Ninguém viria me socorrer. Nem o "comandante Hamilton", nem o carro verde, nem o Harry Potter.

Descobri que existo e que me refaço a cada encruzilhada que trilho, mas tenho que carregar nos ombros a responsabilidade sobre todos os meus atos.

Surgi das cinzas. Fui a Fênix de Hesíodo, do deus Hermes, aquele que furtou 50 vacas do irmão Apolo - o lindão -, o galã do Olimpo. Fui Lázaro.

Tive que caminhar, enxugar minhas lágrimas de sangue, dando um passo de cada vez sobre pernas anêmicas. 

Minhas filhas ainda não tinham nascido, mas descobri que mãos podem ser asas e que pés podem ser mais que pegadas. E que pegadas a chuva apaga.  Uma fornalha queimava o meu cérebro, um turbilhão, que apesar de estar em meu íntimo, parecia estar fora de mim, arrastando-me consigo. Julgava ter estado a uma enorme distância da vida, mas depois da constatação de que poderia fazer diferente, tudo mudou. 

Foram quatro meses luminosos de amor e alegria; depois de "séculos" de sofrimento. Um dia eu conto.

Meus olhos se tornaram outros. Eu via aquele horrível precipício e decidi escrever sobre ele. Já não fazia parte dos que estão sempre lendo para não serem lidos. Decidi contar tudo o que existe no buraco e além dele. Porque para escrever sobre a vida: você deve vivê-la. E isso eu havia feito em doses mortais.

Já não pavimentava o abismo e nem mergulhava nele como uma marionete sem valor. Eu o observava...

Deixei de perguntar para as pessoas o que pensam ou acham de mim. Passei a me preocupar com o que sinto e a ouvir o meu coração. Eu me perdoei.

E a vida ainda me deu alguns presentes. Uma emoção pungente, poderosa e forte como um Hércules chegou me chutando o peito e sussurrou numa lingua ininteligível - mas eu entendi -, e ela disse uma única palavra: Viva! 

Eram minhas filhas.