Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 24 (ou 24ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora - Se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente - Antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

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Segunda-feira. Sandra ligou contando que o chefinho queria recuperar a credibilidade político-administrativa, e tava adotando medidas pra gerir as crises do hospício.

Fiquei animada, porque é o que um governante deve fazer, né? Administrar, e não criar crises. Ainda mais que a gente tá no meio de uma gravíssima...

Ela começou informando que pra enfrentar o problema ambiental, ele tinha mandado adquirir um microssatélite, que custa, por baixo, R$ 145 milhões.

Sei que as florestas são importantíssimas, porque — dizem — funcionam como pulmões vegetais, mas tava mais interessada no meu... quer dizer, no nosso pulmão, né?

Daí, perguntei que providência ele tinha tomado em relação à pandemia.

— Contratou um veterinário.

Achei... como dizer... incomum, mas como ele ia coordenar o programa de imunização do sanatório, imaginei que alguma lógica tinha...

Mas nem consegui acabar de pensar.

— A lógica é aumentar o percentual de insanidade no escritório central, pra alcançar a impunidade de rebanho.

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Terça-feira. Tava tão focada na notícia relacionada à pandemia, ontem, que acabei negligenciando as informações sobre a questão ambiental.

Então, fui perguntar a Piti se ela sabia pra que servia, efetivamente, o tal microssatélite.

— Deve ser pra mapear os microcérebros do manicômio.

Ah, tá!

Esse “Ah, tá” foi na hora, porque depois fiquei no maior dilema...

Será que ela deu alguma indireta?

Não, né?

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Quarta-feira. Tava aqui com minhas desalegrias, espreitando os livros que não li — e não sei se vou ler; as roupas que não usei — e talvez jamais use; minha coleção de canetas-tinteiro...

Daí, Sandra entrou, anunciando que tinha escrito um poemicro — ou poemico, sei lá eu.

Estranhei, porque só conheço três tipos de poemas: o épico, o dramático e o lírico.

Mas ela explicou que era um tipo novo, criado em homenagem ao “Estado máximo do mínimo”.

— Desgoverno máximo

— Juízo mínimo...

Tive que interromper, pra avisar que o hospício tá lotado!

Fiz bem?

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Quinta-feira. Tava almoçando com minha vizinha e assistindo ao noticiário, quando o chefinho apareceu na telinha, todo feliz, carregando um anão nos braços.

Piti explicou que o miúdo era político... ou será que ela disse que o político era miúdo?

Bem, não interessa, o que interessa é que ela me perguntou se eu sabia por que o chefinho tinha tanta afinidade com o tampinha.

Ia responder o óbvio, que era porque o anão também era servidor público, mas como meu óbvio nunca é o óbvio de Piti, falei uma obviedade qualquer.

— Porque ele é homem, mas é minúsculo...

Saiu daqui rindo e dizendo que tinha presenciado o milagre da proliferação de meus neurônios.

Vá entender...

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Sexta-feira. Minha vizinha me contou que o filho de um amigo dela tinha sido parado em uma blitz da Lei Seca, e o pai tava pra lá de revoltado.

O rapaz tinha se recusado a soprar o bafômetro, porque tava usando álcool em gel pra desinfetar o carro, e ficou com medo de o teste dar positivo, conforme disse aos guardas.

Natural...

Até eu sei que tá rolando um vídeo mostrando que quando a pessoa sopra o bafômetro após ter usado álcool em gel no volante, dá essa distorção.

O agente, compreendendo a preocupação, mandou o jovem saltar do carro, pra fazer o teste do lado de fora. Ele obedeceu, só que quando ia saindo, tropeçou no batente da porta e caiu no chão!

Olha o azar...

O policial — educadíssimo, conforme reconheceu, depois — foi ajudá-lo, mas ele se desequilibrou e levou o rapaz junto...

Isso, por causa da bainha de uma das pernas da calça, que tinha rasgado, na primeira queda, e enroscado no outro pé, como explicou pro pai.

Mas o pior é que quando ele colocou o tubo cheirando a plástico novo na boca deu um revertério...

E bem no pé do moço!

O jovem pediu mil desculpas, explicando que tinha acabado de jantar, e os tombos tinham embrulhado o estômago dele, mas os agentes não contaram conversa, e levaram o pobre pra delegacia.

Ele então ligou pro pai, que ligou pra Piti, que é doida mas é bem relacionada, pra pedir que ela ligasse pra um juiz amigo dela...

Advinha o que Piti fez?

Nada...

— Tenho lá cara de ajudar filhinho tentando convencer o paizinho de que é honestinho?

Eu, hein? Com uma amiga dessas... precisa de inimigo?

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Sábado. Os médicos vieram me dizer que estão apreensivos com minha vizinha, porque ela anda com um comportamento estranho, vendo coisa onde não existe...

Quer dizer... vendo, não. Sentindo.

Segundo eles, Piti confidenciou que, vez ou outra, sente o cheiro do coronavírus!

Disseram também que ela admitiu estar com umas manias um pouco... digamos assim... esquisitas.

Contou, por exemplo, que tem uma roupa só pra receber e descontaminar compras, mas que se pega olhando com antipatia pra elas, mesmo depois de lavadas, esterilizadas, secas e passadas.

Mas... Perumpouco...

Se eles acham que Piti tá dentro de minha cabeça, então, eles estão preocupados é comigo!

Vixe! Agora, quem ficou cismada fui eu...

***

Domingo. Os primeiros raios de sol rompem as nuvens, instalando na planície um jogo de luzes e sombras.

Na savana em penumbra, as formas de um baobá projetam-se contra o céu azul, rajado de lilás, vermelho e branco.

E no interior da gruta aberta na base do tronco, dois pequenos pontos cintilam, como estrelas no negrume da noite.

Furando o silêncio dos campos, um rugir prolongado, que se repete uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete vezes...

E cada rugido evoca outro, e outro, até que se convertem em toada, e a toada, em movimento — do alto das montanhas; nas depressões que rasgam os planaltos; por entre rochas, areias e gramíneas surgem vultos de caminhar lento, ondulante, mas vigoroso.

Então, os olhos incandescentes deixam a cava escura do baobá e juntam-se aos demais, norteando a marcha de panteras negras, que circundam a “árvore do esquecimento”, retomada em sua função ancestral.

E do interior da “árvore da resistência” brotam justiça, equidade, liberdade.

Pra todos.

Pra sempre!

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P.S.: despertei com o desejo de ser várias, porque como dizem outros vários, “um sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha. Sonho que se sonha juntos é realidade”.

(porque hoje é domingo...)