Cassiano Antico

A barbárie que criamos para as crianças (e elas nem imaginam)


Foto: Pixabay/Creative Commons

 
A bola que lancei quando brincava no parque ainda não tocou o chão
-- Dylan Thomas

Uma passada rápida pelas noticias do país e do resto do mundo e o que vemos nos causa dor e espanto. Especialistas em crise estão em crise. 

A tendência natural nas redes sociais (antissociais?) é todo mundo ter razão, é todo mundo ficar discutindo. E nem sempre são as discussões que levam a algum lugar. Geralmente as discussões levam os humanos aos piores lugares. Diz-se, inclusive, que após dez minutos de conversa, pela internet inclusive, é provável que o foco do assunto seja perdido, e aí as pessoas passam a discutir milhões de coisas outras, liberando traumas e aliados de traumas que não têm nada a ver com "a questão em si". Que tal não complicar? Dificil, né?

As crianças estão comendo a pipoca que fiz (na panela) e não podem imaginar o mundo que nós adultos construímos. Eu gostaria de escrever em algum lugar remoto, ultra-secreto, num pedaço de papel, com acesso somente a mim para poder salvar todas as crianças do mundo.

Parecia que eu tinha encontrado o segredo. E queria guardar a sete chaves pra orbe não me foder. Mas o mundo acaba fodendo a todos nós.

Kurt Cobain disse que daqui ninguém sai virgem. Fora a coisa filosófica, as minhocas estão no topo da cadeia alimentar. Ou o leão fica "debaixo" da terra, em alguma selva particular, sem o assassino? Até o assassino, o carrasco, no fim, acabará morto e devorado. É só uma questão de tempo. Portanto, Kurt deve estar certo.

Porque o que eu via e o que eu vejo me dá nojo. A indiferença. A indiferença. Deus nos livre da indiferença. Até mesmo a coisa de Deus quando se trata da ciência, é como imaginar um grão de areia, esta partícula, este nada como sendo o centro do universo. A gente se acha tão importante, né? O corpo estatelado no chão: atrapalhando a passagem. "Pisa, passa por cima. Time is money" - diz a boca gananciosa.

Mas eu tinha orgulho de mim. Da amizade que nutria por meus irmãos, amigos, e até por meus cachorros. Pela dor que sentia e que, muitas vezes, não era minha. Eu queria ser o cara destruído naquele acidente. Eu ouvia os berros da esposa na sala de espera. Eu não suportava aquela dor. A mãe do sujeito, desmaiada, quase morta na cadeira, a boca aberta. Quem iria acudir a velha? A filha pequena era o próprio abandono.

Eu me sinto parte do mundo. Então, eu era a velha cambaleante e de boca aberta (dada às moscas; eu era as moscas), eu era a criança, eu era a demência do berro de socorro. Eu era o morto-vivo. Eu queria viver. Ser a esperança! Mas tem que morrer, primeiro.

Eu queria poder curar. Mas me sinto uma tripa. O meu mundo é pequeno. Muito simples.

Eu pedia pro pai me levar pra visitar o moribundo na Santa Casa. E o pai me levava. E na sala de café dos médicos, tio Chiquinho aliviava a tensão de todo mundo.

Ah, tio Chiquinho... Como um legítimo franciscano que sempre foi e viveu. Até o fim. Generoso em tudo. Nas piadas compartilhadas com as enfermeiras de todos os andares, com todos os doentes, na doação da própria vida. Mesmo que não acreditasse em Deus, que fosse inteligente demais "para acreditar num Deus que precisa ser louvado, adorado", lambido o tempo todo; mesmo que não engolisse qualquer coisa, se achasse que fosse fazer bem pro sujeito, falava "vai com Deus, meu filho"; "fica com Deus, meu filho". Falava que Deus ia ajudar. E era de coração. Tudo que fazia era de coração.

Tenho a impressão de que o bilhete secreto ficou escondido num velho bule na casa da vó Julieta; e que não existe mais. Na goiabeira que não dava frutas. Não me lembro o que estava escrito. Nem se tinha algo escrito. Por isso: tenho que morrer, morrer. Como o sujeito que não tem medo de voltar atrás, ao início, porque não tem medo de continuar sentindo. 

Porque o mundo de minhas filhas é um lugar delicado, abençoado... E o meu mundo mata por dinheiro, explode o próprio corpo, se entope de remédio pra ser feliz, pra dormir, fura o seu semelhante com faca, vive de mentira, vive de pose, de roubo.

Eu fico mudo, gago, com vergonha porque sou sujo também. E o que me toma é o começo, o início do livro "Os Irmãos Karamázov":  “Em verdade, em verdade vos digo que, se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto". Fiodor foi buscar lá em São João, Cap. XII, Vers. 24 e 25.