Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 23 (ou 23ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora - Se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente - Antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

***

Segunda-feira. A noite já ia alta, quando minha irmã chegou aroeirando... quer dizer, carregando um trombone. Eu não sabia que ela tocava tambor, que dirá trombone!

Mas daí ela tirou a mordaça máscara e soprou tão forte que pelo menos 70% do sanatório acordou e começou a cantar.

— Chefinho honestinho / Por que sua imaculada / Filha de falsária / Neta de traficante / Sobrinha de miliciano / Recebeu do amigo do marido / Portanto, de seu amigo / Assessor de um enteado / Logo, de seu filho amado / Dinheirinho mal lavado?

Eu até que gosto de rap, mas achei o enredo desse meio forçado... um casal tão reto cercado por uma gente pra lá de torta — famíglia família, amigos, colaboradores...

Só que quando eu ia apontar a inverossimilhança, Sandra ligou pra avisar que não ia ligar mais hoje, porque já tava muito tarde.

Desliguei o telefone e espiei pela janela. Tava o maior breu, lá fora, mas não consegui mais dormir.

Vontade de encher a boca de certas pessoas de...

Melhor não.

Né?

Melhor me conformar com a vigília insônia.

***

Terça-feira. Acordei meio cismada com as ausências de minha irmã. Repararam que andou sumida, semana passada?

Acho que foi por isso que tive aquele sonho com ela, ontem.

Então, em vez de esperar ela me ligar, eu liguei pra ela, pra puxar conversa, comentar a história...

Mas Sandra não alimentou papo não.

Disse que eu tinha delirado por causa de uma pergunta sobre um depósito suspeito, no valor de R$ 89 mil...

E mudou totalmente de assunto.

— Vá atrás que são 120 mil mortes por covid...

Boiei, e quase não pergunto, com medo da reação dela, mas preferi não me calar.

De novo, em vez de responder, ela perguntou.

— O primeiro óbito só apareceu na estatística cinco meses depois. Lembra?

Lembrar, eu lembrava, mas tô até agora tentando entender o que um número delírio tem a ver com o outro...

Vocês entenderam?

***

Quarta-feira. Minha vizinha veio me contar que o chequito chefito queria um programa social pra chamar de seu, e tava mudando os nomes das políticas públicas em vigor no hospício.

Meu Quarto Vermelho ia virar Meu Quarto Branco, a Esmola Viral ia se chamar Propina Eleitoral...

E disse que como ele não tava indeciso em relação ao Bolsa Família, ia mandar uma sugestão, antes da troca definitiva.

— Bolsa Quad...

Dessa vez, quem mudou de assunto fui eu!

Não foi por nada não, é que lembrei que não existe ex-filho, nem ex-genro, e fiquei com uma dúvida cruel em relação aos modelos das famílias anormais atuais.

— Quando uma pessoa mata o filho, que virou genro e depois marido, quem ela matou? O filho, o genro ou o marido?

Mas acho que ela já tinha saído quando eu perguntei, porque me deixou no escuro...

***

Quinta-feira. Sandra ligou pra contar que os estúdios Disney iam lançar um longa-metragem de animação.

Vibrei, porque adoro as histórias de Walt Disney. Ainda mais que o filme ia ser estrelado por um personagem transgênico.

Ela explicou que era a continuação da saga do antipático Donald, mas que, nessa trama, ele não era um pato, era um rato...

E mais: que o antagonista das histórias em quadrinhos tinha um cover aqui no sanatório nacional!

Tô enganada ou ela anda imitando as maluquices de minha vizinha?

Ai, ai...

***

Sexta-feira. Tava aqui ensaboando, enxaguando e enxugando as compras da semana, quando Piti entrou pra avisar que o chefe do posto de saúde tinha emitido um alerta importante.

Não o interino, que não dirige nem maca no posto, mas o efetivo, que é também o chemito chefito geral do sanatório.

Bem, mas a novidade é que ele tinha identificado um novo grupo de risco do coronavírus.

Tremi nas bases, porque já sou idosa, né? Vai que doido tivesse entrado na lista...

— É o grupo dos bundões!

Disparou a bobagem e vazou, com os dentes no quarador e meu espelho debaixo do braço.

Disse que era pra não alimentar meu TOC.

Sei...

Desconfio que é porque o dela quebrou...

Né?

(pisc)

***

Sábado. A encrenqueira que vocês conhecem chegou aqui anunciando que tinha outra sugestão pros administradores do manicômio.

Disse que o chefinho não precisava ficar queimando os miolos que ele não tem pra assinar políticas alheias... quer dizer, públicas.

Segundo ela, tinha um programa que ia bombar, se ele implementasse no sanatório nacional.

— Programa zona total!

Falou, fez cara de paisagem e saiu cantando.

— Dentro de mim mora um anjo / que tem a boca afiada...

***

Domingo. Despertei no meio da noite com o vento gemendo na janela. Quando olhei pra fora, tive a impressão de que as trevas... riam!

O susto só não foi maior porque observei que não estavam sorrindo pra nós. Estavam rindo de nós.

Fechei os olhos e invoquei minha pintassilga, que se fez presente em forma de um arco-íris, me dizendo, sem dizer, que no amanhã haverá lindos dias.

(porque hoje é domingo...)