Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 22 (ou 22ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora - Se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente - Antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

***

Segunda-feira. Minha irmã gêmea tardou, hoje, mas ligou. Passei a maior parte do dia como todos os confinados em sanatórios, asilos e similares: acompanhando o tique-taque do relógio de cabeceira.

Mas no tic 26 mil o telefone tocou. Ou foi no tac 26 mil? 

Bem, o importante é que ela celulou, e tava superanimada!

Nós agora pertencemos a outra classe!

Imaginei a carteira virtual entupida de criptomoedas e milhares de likes em meu post sobre a fuga de Wendy Wyllys para a Terra do Nunca Mais (nunca mais homofobia, calúnias, difamações, fraudes, ameaças...).

Qual!

A euforia era por causa de uma novidade demográfica: o desaparecimento de mulheres sexagenárias, substituídas por sexygenárias.

Achei a tendência genial! Nada de apartheid etário, preconceito, piadinhas ofensivas, abandono...

Em vez disso, sessentonas com autoestima elevada, felizes, saradas, dando banda por aí...

Quando Sandra desligou, passei um zap pra minha vizinha de quarto e contei a boa nova. Pra quê?

— Não vai colar! Esqueceu dos idiolescentes?

Idio... o quê?

Idiolescentes... Idiotas que pensam que só mulher envelhece, e vivem arrastando as pelancas pelas menininhas.

Estraga prazeres, essa Piti...

Né?

(pisc)

***

Terça-feira. O vento frio prenuncia noite ruim. A menina dorme perto de uma janela, numa cama sem colchão.

A outra faz vigília.

Chove.

Um relâmpago perpassa as vidraças sem persianas do desvão e uma imagem rasga sua retina.

As horas passam.

A chuva cessa.

Já não ouve o ruído sinistro do estrado. Nem o choro miúdo da irmã.

Amanhece.

Adormecem.

(uma vez mais, não sei onde estou — se em zona de quimeras ou de reais feras; tampouco por que choro — se por causa de um ou dos inumeráveis flashes de nossos jardins de infâmia).

­­­­***

Quarta-feira. Acordei no meio da noite e vi um vulto vasculhando minhas gavetas.

Já ia dar uma travesseirada na assombração e sair correndo, quando vi que era Piti...

Fiquei muito braba por dentro, mas mantive a calma por fora e perguntei o que ela tava procurando.

— Seu juízo...

***

Quinta-feira. Passei o dia todo com um olho nas telas, outro na janela, com saudades de minha pintassilga. 

Tava meio pra baixo, pensando nas (des)razões da vida — os sonhos baratos, as quinquilharias da alma...

E perguntei, sem pretender resposta, por que a gente às vezes quer parecer maior do que é.

— Talvez seja porque os outros às vezes querem que pareçamos menores do que somos.

Voltei-me, e divisei o reflexo de um perfil na vidraça. Mas não era de um pássaro. Era de uma mulher.

***

Sexta-feira. Tava aqui faxinando, cantando com Chico (“todo dia ela faz tudo sempre igual...”) e ruminando sobre vilanias.

Daí conjecturei por que os homens fazem o que fazem.

— Porque são homens.

E de novo tive a sensação de que a voz partia de um semblante espelhado na janela, pleno de marcas forjadas pelo tempo.

Marcas que se transmutaram tão logo me aproximei — e me vi frente a frente com a minha presença.

***

Sábado. Fui atrás de Piti, pra contar das minhas inquietações, e ela, em vez de clarificar, me confundiu mais ainda, com um trololó chato que só...

— Pensa num playground instalado na cobertura de um prédio, sem qualquer anteparo.

Tentei...

— Então, digamos que, pra evitar tragédias, os condôminos se reúnem e redigem um estatuto, exigindo, com prioridade absoluta, a instalação de redes de proteção.

Mais óbvio, impossível...

— Só que enquanto o síndico faz incontáveis levantamentos e consultas sobre o dispositivo, o tempo corre e várias crianças caem. Entendeu por que o tal estatuto não evitou mortes?

— Claro! Porque não presta! Tem que fazer outro regulamento, mais eficiente, uai...

E pensei cá com meus botões: ora, fiquei louca, não burra...

Mas acho que pensei alto de novo, porque ela gritou que eu não tava ficando louca, tava era ficando burra!

Só tascando álcool no juízo dela...

Ou será que devia ser no meu?

Agora fiquei em dúvida...

***

Domingo. Passei o dia pensando nos sentimentos acontecimentos da semana — o dilema diálogo de anteontem, a conversa (a)fiada de ontem...

E fiquei tentando estabelecer conexões, lembrando dos gilbertos expertos em proteção à infância, na falta que fazem os que se foram — nossos nortes, nossos amores... —, quando de novo escutei uma fala.

Só que dessa vez, em lugar de responder, a voz perguntou.

— Por que papel não pode ficar na chuva?

Porque estraga, pensei.

— Então... cidadania tem que sair do papel, pra não desmanchar nas chuvas...

Tornei a me aproximar da janela, mas dessa vez o reflexo não se alterou, e em vez da minha, vi a face morena de minha mãe.

No quarto ao lado, Piti ouvia Caetano.

“Entra pelos sete buracos da minha cabeça / A tua presença / Pelos olhos, boca, narinas e orelhas / A tua presença[...] / Desintegra e atualiza a minha presença / A tua presença [...] / Transborda pelas portas e pelas janelas / A tua presença...”.

(porque hoje é domingo...)