Passei de carro e vi o sujeito parado na esquina, parecia um poste, um poste magro, pequeno. Se um poste tivesse vida e sentimentos, este seria um poste triste e sem luz. Um poste com sede.
Penso na água do mar, que não serve para beber.
Dei a volta no quarteirão e estacionei o carro. Era o meu amigo e estava um trapo. Descalço. Já tinha ouvido tantas estórias a seu respeito. Das garotas apaixonadas, da inveja que gerava nos outros, das farras. Mas o que eu nunca havia me esquecido era do seu coração. Gigante como ele.
Quis contar pra ele que fui desafiado, em determinado ponto de minha existência, a me encarar de frente. E esta tem sido a batalha mais difícil de toda minha vida. Fui obrigado a arrancar de minhas vísceras potências tenebrosas. Meu fim não seria a sensação provocada por uma substância química que me amortecia do mundo, mas descobrir que eu também posso; eu, o mais miserável dos seres humanos da face da terra: consigo!
E, de todos os sermões que tomei, explicações que me enfiaram goela abaixo, tudo serviu apenas para me deixar mais envenenado. Mas algo sutil, simples, muito simples, gentil e bondoso me calou fundo; algo como "a pureza das respostas das crianças". Como Cristo desenhando triângulos no chão e dizendo a uma multidão furiosa: "Aquele que não tiver pecado atire a primeira pedra".
Pensei em contar pra ele que eu, um sujeito tão compulsivo - que ele havia salvo de duas overdoses -, tinha conseguido abandonar o vício. Quis agradecê-lo. Mas nos seus olhos não havia ninguém. E constatei, mais uma vez, minha impotência, minha completa derrota perante o outro, perante uma pessoa que sempre representou a vida, a generosidade, a bondade e a alegria para mim. E que agora havia desistido de tudo.
As pessoas riam dele. Contavam orgulhosas que tinham comprado sua roupa de mergulho por preço de banana, suas camisas de grife, seu snorkel, pés de pato, facas de caça, carros, motos. "Dei um balão, dei um balão no Noinha". E riam como fazem as hienas, os pobres de espírito. Ele, ele sofria. O pai dele sofria. A mãe sentia muita vergonha. Nem saia de casa.
Fui sim caminhando em sua direção com minhas filhas me segurando as mãos. Não pude evitar. E a gente não queria estar ali. Ele tentava driblar meus olhos. Parecia que tentava evitar olhar para fora e, principalmente, para dentro. Seus olhos pousaram sobre minhas filhas. O que teria pensado, lembrado, sentido? Sorriu, mesmo naquele estado vegetativo e forçado e mecânico e triste das drogas. Ali não se tratava de nenhuma dessas derrotas de bilhar, ou qualquer competiçãozinha mesquinha. Ali estava um amigo, um irmão. E seus olhos bandeirosos expunham uma sensação: o fardo de ter falhado em tudo, em tudo.
Um grito triste e mudo me atingiu em cheio! Como um tiro no coração. E não tinha pé de pato, moto, carro conversível, prataria, dinheiro, medalha, revide, abraço, vingança, redenção: que pudesse tapar o buraco daquele peito... Como se seus olhos me dissessem: "Pra mim: chega, irmão".
Ele havia passado por mais de 30 internações. Estava cansado de lutar. Tentei conversar. Ele preferiu o silêncio. Dois meses depois estava morto.
O livro "Junky", de William S. Burroughs, no canto do quarto. Posso ouvir o prólogo, que acabou sendo o seu epitáfio: "Por que o senhor precisa de entorpecentes, Sr. Lee? é a pergunta mais formulada pelos psiquiatras estúpidos. A resposta é: 'Preciso de junk pra levantar da cama, pra me barbear e tomar café. Preciso de junk pra me manter vivo'".
Chorei sua morte. Mas senti uma espécie de alívio por ele. A dor acabou, ele não seria mais motivo de burla e julgamentos "humanos". Sempre que penso no mar, penso no meu amigo e sinto um tipo muito particular de solidão. Só os que sofreram com o vício das drogas para compreenderem.
E penso especialmente na água do mar, que não serve para beber. E que tem bastante, existe em grandes quantidades pelo planeta todo, como pessoas no mundo, e a gente "morre de sede no meio do mar". Como no poema. Como na vida.
Até um dia, amigo. Seu sorriso tá guardado.