Cassiano Antico

Faço hoje uma oração ecumênica: "a força do amor vai nos salvar"

 

Sou Ladybug/Sempre com sorte!/A força do amor/Vai nos salvar!

-- Miraculous: As Aventuras de Ladybug

Dizem que domingo é dia dos pais. É uma data importante no calendário marqueteiro, né? Imagino fotos e abraços e poses como as cataratas do Iguaçu caindo pelas redes sociais. Mas agora preciso limpar minha filha que me chama pelo nome enquanto escrevo.

Beirute está nos ares; imagino que muitos pais e filhos e mães e cães estão morrendo. E que eu deveria estar escrevendo só coisas boas no dia de hoje, né? Mas isso só seria possível se eu me mudasse de planeta.

A barricada está cedendo, a vassoura que carrego nas mãos parece meio capenga para limpar tantos escombros. Enquanto luto contra algumas lágrimas que insistem em enfrentrar meus olhos, olhos que assistem meus semelhantes morrendo, tento me recompor para acompanhar minhas filhas nas aulas pela internet, terminar de limpar a mais nova e vestí-las para as aulas. Ainda temos tempo, 15 minutos, e elas me chamam para brincar.

Acabo de ser convidado para ingressar num outro planeta. O pescoço da mais nova (com os olhos virados para cima) dá uma volta de 360 graus pra ver o avião que passa longe no céu. Eu não tinha reparado. Nem tinha visto o céu, nem o teto do apartamento; acho que nem o chão. Ela me mostra a vida, as coisas além da minha cabeça, do meu nariz. Não quer perder nada. "A escola é perto. É na sala, papai; é no computador" -  diz. Mas até lá, temos uma viagem a fazer, e que é uma grande aventura. Me quer onde eu possa ser visto. Só de me ver próximo, fica tranquila. - "Pai?" - "Tô aqui, filha. Tô aqui". Quer minha bênção. Minha atenção. Te dou, filha.

E sai em disparada, imitando a heroína Ladybug, pulando brinquedos como se fossem prédios, tentando, como no desenho, salvar alguém, fazer o bem, acreditando no amor, sendo o amor. Acho indecente fotografar, filmar, pegar o celular diante de tamanha inocência. Desligo aquela porcaria "útil". Jogo num canto. Sinto um alivio.

No escorregador, Dodó quer subir pelo lado da descida, pelo lado oposto, e sobe rápido, como um macaquinho, ri pra mim, lá de cima. Mostro as escadas, o lugar certo e seguro de subir. Ela ri e diz que já tem 4 anos. E repete: "Mas eu já tenho 4 anos. Não tem perigo". 

Eu queria ter impedido o que aconteceu em Beirute. Eu queria tanta coisa. E me pego lambendo minhas próprias feridas. Isadora  pega a espada de plástico e diz: "Papai, eu vou matar o corona vírus agora. Vou salvar o mundo". E ri, confiante. Eu rio junto, mas percebo que estou chorando e fico com raiva de mim. Está na hora da aula - elas me dão um toque.

Olho e reparo que elas avançam, com seus contornos indecisos e graciosos, pelo corredor do apartamento. No planeta que estou, minhas filhas são estrelas de um filme com o final feliz, ou melhor, são a própria felicidade. Como não consigo me lembrar? Já fui criança? Não fui?

E eu me mantenho perto delas como o escravo ao lado de uma soberana, de uma rainha, portando na alma e no espírito o dever de zelar e proteger. Hoje faço a oração mais ecumênica e inocente que possa existir por todos os pais. Por todos os seres humanos. "A força do amor vai nos salvar".