Foto: Suzana Varjão
Nota da escritora - Se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!
Nota da personagem paciente - Antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!
***
Segunda-feira. Despertei com um canto delicado, de fraseado diversificado e harmônio, como se alguém estivesse... sei lá... arrulhando uma prece.
Abri a janela, e sobre o parapeito havia um pequeno pássaro. Tinha o dorso esverdeado, asas e peito com rajadas de cor laranja e uma mancha branca na parte inferior, perto da cauda.
Pensei que minha presença iria assustá-lo, mas ele não pareceu se incomodar. Ao contrário. Gorjeou mais alto, como se quisesse anunciar algo, ou entabular um papo.
Aproveitei pra ruminar meu cansaço ante o jogo de vida e morte; um cotidiano feito de incessantes despedidas.
Mas quanto maior era o meu lamento, mais alto a ave cantava, como se me dissesse chore, mas não se entregue; lastime, mas resista.
Não sei quanto tempo levamos nessa espécie de duo, mas quando o pássaro finalmente bateu asas, tive a impressão de ter visto uma lágrima rolar de um de seus diminutos olhos.
Na TV, uma voz anunciava a partida de mais um Nobel da Paz — o irlandês John Hume.
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Terça-feira. Assim que os primeiros raios de sol invadiram o quarto, saltei da cama, na esperança de rever o pequenino pássaro.
Queria continuar o diálogo de ontem, que apesar de triste, havia serenado — mas não calado — meus sobressaltos.
Ansiava lhe contar que descobrira o nome que haviam dado a suas cores, formas e cantos: pintassilgo, o protetor contra pragas.
Também falar do meu espanto ante a banalização do mal; o renascimento do fascismo; a insensatez mundana.
Pedir proteção.
E um pouco de esperança.
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Quarta-feira. E não é que ele voltou?
Ele, não!
Ela.
Sei porque andei espreitando a vida pintassilga, e como a pequena visitante não tem marca preta na cabeça, não é passarinho. É passarinha.
A janela estava aberta, ela entrou, pousou ao meu lado, na cama, começou seu canto; e eu, meu pranto.
Minhas pequenas e grandes decepções.
E vergonhas.
Vergonha da raiva, da impotência, do medo da morte e dos homens.
Em resposta, um chilrear tão cristalino, vívido, forte, que eu calei minhas fraquezas travestidas de fúrias e desapontamentos.
E até pensei em desistir de minhas desistências.
Quando minha pintassilga voou, entendi que ela era mais que uma ave. Era um anjo da guarda.
A essa dádiva, dei um nome: Ana.
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Quinta-feira. Os tons de minha pintassilga estavam um pouco diferentes, hoje.
O laranja estava mais esmaecido, mais próximo do amarelo; o verde quase desaparecera, fundindo-se ao cinza. E percebi uma mancha vermelha acima do bico.
Como as cores pintassilgas identificam a origem da ave, fiquei tentando imaginar a que terras pertencia, de quão longe vinha, pra me fazer companhia.
Mas em vez de procedências, ela me falou das brisas que lhe roçam a face; dos amanheceres e crepúsculos pincelando montanhas e vales; dos cheiros de maresia, dos sons das cachoeiras...
Foi como se me levasse junto em viagens que já não me são permitidas.
Assenti a desimportância de nacionalidades, cores, limites imaginários sobre um só mundo — ou dor.
E entendi o que significa ser livre.
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Sexta-feira. Eu não fecho mais janelas, por causa de Ana.
Às vezes, nem tenho certeza de que está aqui, a ave, mas sei que ela me ouve. E me entende — como eu a ela, não obstante sermos tão diferentes.
Nos entendemos porque seu canto é meu grito; a gênese de sua prece é a mesma da minha indignação.
E diálogos não são feitos só de verbos.
Também de doações e silêncios.
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Sábado. Só hoje me dei conta das ausências de Sandra e Piti essa semana.
Mas de manhã cedo elas cessaram a calmaria.
Logo num sábado, quando, em geral, elas se ausentam de mim daqui.
E só pra desdenhar dos diálogos com minha pintassilga.
Disseram que eram monólogos...
Que eu estava conversando com a porção espiritual que habita comigo me habita.
Enxotei do quarto, as raposas.
Que vão cobiçar uvas aves raras longe daqui!
Aumentei o volume do som e cantei “Me deixa ser”, bem alto, pra todos ouvirem.
— Me deixa ver o que na vida tem de bom.
— Me deixa ser o que vocês não são...
***
Domingo. Quando acordei, ouvi mais que um gorjeio.
Olhei pra minha janela e lá estavam, além de Ana, dois pássaros — esses, de cabeça da cor da noite e corpo rajado de amarelo-ouro.
Quem conhece os atributos desses pequenos mensageiros entremundos já entendeu que eram pintassilgos baianos.
O canto era tão forte, tão belo, que compreendi que não eram só pintassilgos — eram xicarangomas, ou “sacerdotes músicos”, no idioma da nação angola.
E eles cantaram em dueto 'histórias que não voltam mais quando os lenços cortam os laços, num definitivo adeus. Nenhum abraço, nenhum sol nos olhos baços, nem um traço, nem um véu, apenas o silêncio e o som de Deus...”.
Foi como se estivessem dizendo até breve, Jaime Sodré! Até mais, Jorge Portugal!
(porque hoje é domingo...)