“Semanas atrás atendemos uma paciente que precisava de internação para investigação clínica, apesar de não da inexistência de risco iminente de morte. Quando o parceiro dela chegou ao hospital, não permitiu que a internação ocorresse e assumiu qualquer risco pela saúde da paciente. Nós não tínhamos um relato de ameaça ou agressão por parte da mulher, mas a situação de possível abuso imposto pelo parceiro incomodou toda equipe assistencial”, contou o médico Erick Piorino na primeira semana de julho.
Ele é clínico geral e médico referência da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Chácara Klabin do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Embora “ficar em casa” seja a principal recomendação para conter a propagação do novo coronavírus e o adoecimento pela Covid-19, o isolamento social tem outro significado para algumas mulheres: medo, angústia e aumento das chances de violência psicológica e física.
A quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus aumentou o número de denúncias feitas no Ligue 180, a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência.
Entre janeiro e abril de 2020, foram 37,5 mil registros ante 32,9 mil no mesmo período do ano passado. A alta de 14,12% representa 310 chamadas por dia relatando e abuso ou violência.
O aumento da violência contra a mulher durante pandemia não é uma exclusividade brasileira.
No condado de Jianli, província de Hubei, na China, o departamento de polícia relatou o triplo de casos de violência doméstica em fevereiro de 2020 na comparação com o mesmo mês de 2019.
Na França, os relatos de violência contra a mulher cresceram 30%, sendo que em Paris o crescimento foi de 36%.
Na Espanha, o número de emergência para atendimento de mulheres vítimas recebeu 18% mais ligações nas duas primeiras semanas de bloqueio que no mesmo período do mês anterior.
“Para algumas mulheres, é muito difícil passar mais tempo em casa diante das incertezas da economia familiar, com maior consumo de álcool e droga nesse período de isolamento. Estresse, álcool, drogas e questões econômicas são potencializadores da violência. Mas é importante entender que esses componentes não são motivadores dela. A violência já ocorria antes”, explica Conceição de Maria Mendes de Andrade, cofundadora e superintendente-geral do Instituto Maria da Penha.
No estado de São Paulo, de acordo com o relatório de Violência Doméstica Durante a Pandemia produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os atendimentos de violência contra a mulher cresceram 44,9% em março de 2020 na comparação com o mesmo período do ano anterior – eles passaram de 6.775 para 9.817.
Ainda em São Paulo, o número de feminicídios saltou de 13 no ano passado para 19 em 2020. Já no Mato Grosso, a alta deste tipo crime foi de 400%, com registro de 10 casos em março deste ano contra 2 no ano anterior.
O estudo analisou dados do Acre, Ceará, Pará e Rio Grande do Sul.
Apesar dos atendimentos aumentarem, as queixas de violência estão sendo menos formalizadas.
Exceto pelo Rio Grande do Norte, todos os estados tiveram queda no número de registros de boletins de ocorrência: 29,1% a menos no Ceará e 28,6% a menos no Acre, por exemplo. “É uma análise que precisa ser cuidadosa.
A violência aumentou, mas a formalização dela não. Isso acontece porque em muitos casos os Boletins de Ocorrência exigem a presença da vítima. E aí tem questões como a dificuldade de sair do lado do companheiro para fazer a denúncia e a redução nos horários de atendimento de algumas delegacias”, afirma a cofundadora do Instituto Maria da Penha.
Na área da saúde, ainda não há levantamento que verifique o crescimento de atendimentos médicos motivados por violência contra mulher neste período de quarentena.
“Já é uma característica deste tipo de vítima não procurar de imediato um pronto-socorro. Com a questão do isolamento e o fato de muitas pessoas evitarem o uso de serviços de saúde neste momento, é possível que o problema esteja subdimensionado”, explica Erick Piorino, médico do Einstein.
De acordo com o médico, os aspectos mais comuns em mulheres vítimas de agressão são: queixas que não justificam a lesão (por exemplo, ela chega com marcas de estrangulamento e alega que foi a gargantilha que causou o ferimento), demora para procurar o atendimento médico, presença de uma figura masculina constrangendo a paciente durante a consulta, descontinuidade do tratamento e histórico de abortos consecutivos.
“Também é comum não irem sempre na mesma unidade de saúde e alternar os horários para evitar criar uma relação de confiança com a equipe de assistência”, diz.
Do lado psicológico, não é incomum pacientes sofrerem com crise de ansiedade, depressão, medo constante e até o transtorno por estresse pós traumático, que é caracterizado pela dificuldade de se recuperar após vivenciar um acontecimento assustador.
É como se a vítima ficasse revivendo constantemente, inclusive com sintomas físicos, as situações que a traumatizaram. “Cada indivíduo reage de uma forma diante de uma situação de violência.
Os danos podem ser muitos e vão do medo, vergonha e perda da autoestima até uma depressão profunda e outros transtornos”, explica Ana Merzel, psicóloga do Einstein.
Para especialistas, a inibição de crimes que atentem contra as mulheres é responsabilidade de toda a sociedade. “É nosso dever, quanto sociedade, formar uma rede de apoio.
Então, preste atenção aos sinais, nos barulhos da vizinhança. Não podemos aumentar o volume da série que estamos assistindo e fingir que não é nosso problema, porque é. Temos de estar perto das nossas amigas, da nossa família”, diz Conceição, do Instituto Maria da Penha.
“A atenção e empatia podem ajudar muitas mulheres”, afirma Piorino. Ele lembra que vários estudos sobre o tema mostraram que a implantação de questionários com simples perguntas podem ajudar na identificação de casos de violência contra as mulheres. Um guia médico elaborado pelo Comitê da Sociedade Médica de Massachusetts para Intervenção e Prevenção da Violência apontou que uma única pergunta aberta – como por exemplo “Em qualquer momento, um parceiro atingiu, chutou, machucou ou assustou você?” – feita rotineiramente, de forma direta e sem julgamento, pode triplicar as chances de detecção deste tipo de violência na prática médica.