Cassiano Antico

Para onde nos vai levar a "Torre de Babel" em que estamos encerrados?


Foto: SL Wong/Pexels/Creative Commons

 
E eu não sou nem metade da metade da metade do que eu quis ser de verdade
-- Na voz do Leoni

De onde veio toda essa torre de Babel linguística? "Como surgiu o alfafeto?", pergunta minha filha Valentina, 6 anos.

Discorro sobre as primeiras civilizações, antes mesmo da escrita, me aventuro pela semiótica: o significado, o significante, a mensagem. A arte rupestre. Falo com detalhes das representações dos homens das cavernas, mas vejo em seus olhos que ela quer uma resposta definitiva.

E são tantas especulações. Imagino que há muito tempo, tudo deve ter começado com um rabisco qualquer, um símbolo numa caverna, para transmitir algo a alguém ou para se lembrar de algo. Ou ainda para definir um objeto, animal ou mesmo um território. Mas por quê as pessoas descrevem um mesmo objeto através de signos totalmente diferentes?

Assim também se pergunta o jornalista Ryszard. Um homem, uma montanha, uma árvore, têm a mesma semelhança em qualquer parte do mundo. Mas a decisão de fazer de determinada maneira o traço muda tudo. E cria-se um código, uma linguagem adotada primordialmente por um clã. E, a partir daí, a coisa adquire vida própria.

Não preciso ir muito longe. Através dos olhos de minha filha Dodó: eu, minhas pernas, a boca da Ju, a árvore e até mesmo o céu são completamente diferentes do mundo da Valentina. Inclusive a maneira de dispor tais formas sobre o papel. Se elas fossem do tempo das cavernas, teriam que chegar a um acordo de como representar um boi na pedra. Talvez tivessem que sair na porrada para ver quem ia ficar com última palavra. Desenhada!

As pessoas são capazes de morrer pela própria língua. Como aconteceu com a invasão inglesa na Índia, querendo impor o idioma de Shakespeare no país de Buda. Muitos indianos tocaram fogo no próprio corpo em represália, porque seria o mesmo que abrir mão da própria identidade.

A língua é a mãe de um povo. São as primeiras palavras que ouvimos nesse mundo e as que falamos para sentir que estamos vivos e que seremos compreendidos. Lembro das primeiras palavras da minhas filhas. Valentina disse: "Papa". O que poderia significar papai ou papá (rango). E Isadora falou "Zazá". Estava chamando a irmã.

O fato é que nosso consciente é relativamente "criança" em relação ao nosso inconsciente - que tem mais de 300 mil anos -, antes de conseguirmos pronunciar ou balbuciar um "aa uu". A "comunicação"  é uma forma medíocre da inteligência humana, como discorre Nietzsche no livro "O Nascimento da Tragédia". Padroniza todo mundo.

Muitas portas do nosso inconsciente continuam fechadas, lacradas, desconhecidas, não foram desbravadas. Afinal, faz quanto tempo que existe a palavra escrita? 

Por volta do século VIII a.C. os gregos adaptaram o alfabeto fenício para seu próprio idioma, criando no processo o primeiro alfabeto "verdadeiro", no qual as vogais tinham um status igual ao das consoantes. Muito pouco tempo em relação a todo sentimento armazenado e represado no nosso mais profundo abismo... 

Segundo Walter Benjamin, filósofo e teórico literário alemão do século XX - que separava a cultura em erudita, popular e das massas -, a cultura tornou-se um elemento de mercado. Para Benjamin, o cinema e a fotografia representaram o ápice do desenvolvimento tecnológico que levou à cultura de massa.

E hoje é tudo cultura das mídias. Benjamin desprezava qualquer cultura que não fosse erudita. Mas nem mesmo toda a cultura erudita do universo é capaz de abarcar minimamente o que se passa na alma e no coração humano. Benjamin "confunde" conhecimentos culturais com cultura. Porque cultura é tudo, é a alma de um povo, que inclui conhecimento, crença, arte, moral, fome na favela, bebum caído na calçada, ônibus lotado, peste, mosca na sopa, lei, costume e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade.

E, carregando o texto para outro ponto, penso no trabalho. E nos hipócritas. E nos senhores das armas. E no que minhas filhas irão enfrentar. A torre de Babel! Alguém se lembra de um sujeito chamado Hitler, sempre com calças com vinco, cabelos bem pentados, bigodinho alinhado, não falava palavrão, boca limpinha, e que fazia horas extras dizimando milhões e milhões de seres humanos, exercendo sua liberdade de "expressão"?

Perguntei a uma tia com Alzheimer se ela se lembrava do assassino; ela me disse: "Esse homem era muito ruim, filho. Era o diabo. Já morreu". Sua filha não entende como a mãe pode se lembrar do genocida e não se recordar do próprio nome e nem dos filhos e netos.

O mal, o terror, causa marcas profundas. E temos os famosos especuladores da bolsa de valores que ganham enquanto os outros perdem tudo. O rapper xuxu da merenda. Tem até o Flavinho rachadinho. São estes os exemplos do nosso país? Como são cruéis e desalmados e emporcalhados... 

Oh, mundo hipócrita! Não suje os olhos e nem a alma das crianças! Minhas filhas me chamam para curar um pássaro que caiu no quintal. Uma das asas está machucada. Digo que ele vai voltar a voar. Fazemos curativos no voador. O semblante das pequenas muda. Ilumina o ambiente e espalha esperança que ultrapassa a cidadezinha. Elas querem cuidar e salvar. Libertar as asas do mundo.