Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 17 (ou 17ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora:  se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

***

Segunda-feira. Minha irmã gêmea fez uma videochamada anunciando que alguém andara proibindo as pessoas de gritarem...

Achei uma ideia tão de jerico, que nem deixei ela detalhar a novidade. Lembrei de Clarice Lispector e dei o maior berro.

Sandra me olhou com cara de quem tinha acabado de ver ministro da cidadania atuando, e me perguntou por que eu tinha gritado.

— “Porque há o direito ao grito. Então, eu grito!”.

Mas ela argumentou que não tava falando de política, e sim de saúde...

Aí, quem fez cara de quem tinha visto ministro fantasma fui eu!

— A proibição é de não gritar em montanha-russa, pra não espalhar vírus, criatura!

(depois a estraga-piadas sou eu...)

***

Terça-feira. Piti chegou aqui entusiasmada, contando que ia ter prova de atletismo na sede político-administrativa do sanatório.

Não gosto nem um pouco de atletismo, ou de quem diz que tem histórico de atletismo, mas fingi interesse e perguntei quais eram as modalidades da competição.

Ela disse que tinha duas categorias: “Corrida de velocistas”, com a medalha de ouro indo pra quem cruzasse mais rapidamente o palácio do manicômio; e “Exibição de ginastas exquase”.

Nunca tinha ouvido falar dessa ginástica, mas como cautela e Ivermectina canja de galinha não fazem mal a ninguém, e eu não tava a fim de levar catiripapo, fiquei na minha...

Só perguntei quem eram os competidores.

Ela disse que a lista era grande, mas que tinha dois favoritos, e a perspectiva era de empate.

— É um exquase ministro, deposto antes de ser posto; e uma exquase detenta, solta antes de ter sido presa...

Aí, pensei que Piti podia se inscrever como exlúcida!

Mas acho que ela não ia ter chance...

Né?

(pisc)

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Quarta-feira. Hoje foi a vez de Sandra chegar toda animada, contando que o desempenho do setor de políticas públicas para mulheres podia melhorar muito!

Gostei da notícia, porque essa área do sanatório tá à deriva mesmo, né? Então, quis saber como isso podia acontecer.

Ela disse que era só a titular da pasta cursar uma disciplina de Humanas que, com certeza, ela tinha perdido na universidade.

Argumentei que se ela tinha se formado, o que poderia aprender de tão relevante com uma única disciplina?

— A fazer sexo sem limites!

Pensando aqui em me matricular como aluna especial...

(só por curiosidade, tá?).

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Quinta-feira. Piti chegou aqui revoltada com a política administrativa da pandemia...  ou seria com a administração política da pandemia?

Não importa!

O que importa é que, segundo ela, o chefe do sanatório estava distribuindo placebo pra população, pra ver se conseguia potencializar a insanidade do rebanho...

Observei que ela tinha errado o conceito científico de “imunidade de rebanho”, mas relevei, porque vi que ela tava nervosa...

E perguntei que placebos eram esses.

— Milico em lugar de médico, pastor substituindo professor...

— Então não é placebo, é genérico, porque o princípio da droga tá ativo, não?

Me deu um beijo na boca e saiu se torcendo de rir...

Entendi nadica de nada...

***

Sexta-feira. Sandra deu uma de Piti, essa sexta. Veio pra cá tarde da noite, sem avisar, e entrou em meu quarto tão bruscamente, que me pegou sem meus equipamentos de proteção individual.

Disse que tinha vindo complementar uma enquete intersanatorial sobre o dia-a-dia dos confinados.

A primeira pergunta foi sobre qual era, em minha opinião, o maior inconveniente do cotidiano de uma casa durante a pandemia.

— Receber visita-surpresa!

Já viu carrasco lhe encarando na hora de tascar o machado no seu pescoço?

Eu também não, porque nunca fui decapitada, mas imagino que seja assustador! E foi a cara que Sandra fez.

Fiquei com tanto medo, que me piquei pro quarto de Piti e só voltei amanhã...

***

Sábado. Amanhã... quer dizer... hoje, porque o amanhã acabou, né? Foi ontem... ou não?

Ando tão confusa com essa história de tempo, data, calendário...

Bem, fato é que quando acordei, Piti quis saber por que eu tinha vindo dormir no quarto dela (não perguntou na hora porque já tava dormindo, tá ligado?).

Eu expliquei o que tinha acontecido e perguntei qual teria sido a resposta dela.

— Receber hospede-surpresa!

Gostei... o transtorno é realmente maior...

Pensei isso na hora, mas depois fiquei cabreira, porque ela danou a cantar o mesmo verso de uma música de Chico Buarque, tipo disco arranhado, enquanto me empurrava pra porta...

— O que será que será, que dá dentro da gente e que não devia, que desacata a gente, que é revelia...

— Que desacata a gente, que é revelia...

— Que desacata a gente, que é revelia...

— Que desacata a gente, que é revelia...

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Domingo. Sabe aquele status do Face onde tá escrito “Fulana(o) está se sentindo........”, e você completa com seu estado de espírito do momento?

Então... fui bisbilhotar o de Sandra, pra ver o que ela andava aprontando, e vi que tava “se sentindo um gênio”.

Minha irmã é inteligente, mas não é exibida, então, saquei que tinha feito alguma coisa fora do comum, e liguei pra ela, pra saber qual era a boa.

A explicação pra estar se sentindo tão inteligente:

— Em terra contaminada pela idiopatia, quem tem um neurônio é rei...

Fiquei um pouco decepcionada, e acho que ela percebeu, porque disse que tinha outra justificativa pra estar com a autoestima elevada.

— Em terra dominada por quem só sabe usar o físico, nunca o intelecto, até um vice é rei...

E me perguntou qual motivo eu preferia...

Argui meu direito constitucional de ficar calada e fui dormir...                        

Fiz bem?

(porque hoje é domingo...)