Cassiano Antico

Onde moram os monstros que assombram nossos dias e noites


Foto: Pexels/Creative Commons

 
E é tão bonito quando a gente sente que nunca está sozinho por mais que pense esta
-- Gonzaguinha

Há uma passagem no livro "Vida e Proezas de Alexis Zorbás", de Nikos Kazantzakis, em que Zorbás fala ao escrevinhador: "Diga-me em que você transforma o alimento que come e eu direi quem você é". Porque têm aqueles que transformam o alimento em gordura e excremento, outros em disposição e trabalho, e outros, ainda, em Deus!

E vejo Zorbás derrubando uma cadeira, abrindo espaço, dançando como uma criança, dizendo através do corpo tudo que não pode ser contado por palavras.

Admiro do fundo de minha alma um homem livre numa terra de acorrentados e produtores de excrementos. Avanço o meu caminho, aceno prum astro brilhante que pertence às crianças e aos cães. É um privilégio poder flanar sobre tal orbe. Estou prestes a pedir permissão para pousar. Sou chamado. Sinto meus pés no chão. A prisão do apartamento torna-se um parque público. Há alegria, vida, música, crianças correndo. O sol procura o meu rosto. O cheiro é de pinheiros e de laranjeiras.

Inspiro o ar. Valentina alimenta patos num lago (que é um tapete improvisado); Dodó voa com as andorinhas no pula- pula, agarrada a uma boneca de pano - presente da avó. Tem um helicóptero de madeira pendurado no teto; olho de novo e o teto é o espaço sideral, não é mais uma parede branca, finita, de tijolos. Uma canção do Gonzaguinha conduz o momento. Eu me rendo! Esta coluna semanal é como a espinha dorsal deste mundo pequeno.

Os monstros que mais nos atormentam moram dentro de nós. Mergulho de ponta para me salvar e não sujar o ambiente. Não sinto medo! Ouço o santir e contemplo a dança libertadora de Zorbás através das crianças. É como desbravar uma gruta selvagem. Sugo a lágrima do passado, que ainda me machuca, e a transformo num pássaro azul. Dou-lhe asas grandes e liberto do meu peito. "Onde vivem os monstros?"

Segundo a definição de Maurice Sendak, a criança precisa evocar brincadeiras para lidar com sua vulnerabilidade ao medo, à frustração – emoções que fazem parte da vida. Para dominar estas forças, a criança se inclina em direção ao imaginário, em direção a um mundo de imaginação onde as situações emocionais problemáticas se resolvem. Einstein dizia que a imaginação é mais importante que o conhecimento. Sua imaginação o levou à teoria da relatividade. A teoria da relatividade permitiu o advento de coisas como o telefone, o calibrar do gps que observa o universo, a Internet, isso aqui. 

As crianças são os verdadeiros artistas deste mundo porque podem imaginar; sugam o sangue de cada minuto de vida, transformam tapete em lago, teto em céu, vassoura em cavalo, comida em Deus: porque neste mundo tudo é relativo.

 
A verdade é que não há verdade
-- Pablo Neruda/Obras completas

Sou presenteado com um barquinho de papel e um sorriso desdentado. Sinto vontade de chorar... Afinal, os seres humanos  brigam tanto uns com os outros e acabam, quando morrem, devorados por vermes, calados. Mas agora posso suportar o real, superar a vida e me despedir dos produtores de excrementos, dos complacentes e até dos assassinos. As preocupações dissipam-se, os aborrecimentos mesquinhos fogem, tudo se torna uma fumaça incolor e se dilui, restando apenas um aquário, três peixes e olhos brilhando feito diamantes.

A alma volta ao local de origem.