Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 16 (ou 16ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora:  se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

***

Segunda-feira. Sandra invadiu meu quarto mais ardida do que nunca. Tudo porque chamaram ela de mulata.

— Você sabe o que significa “mulata”?

Respondi claro que sim, mulata é o mesmo que morena, filha de negro com branca, ou branco com negra, tanta faz...

Malcriada como sempre, me chamou de colonizada, dominada, retardada, e não sei quantas ofensas mais.

Fiquei sem entender o porquê da zanga, já que eu, ela e Piti nascemos dessa mistura aí...

Argumentou que mula vem do latim ´mulus´, que significa “produto do cruzamento do cavalo com a jumenta, ou da égua com o jumento”.

— Deu pra entender, ou quer que eu desenhe?

Fingi que tinha entendido, pra não tomar outra bronca, mas acho que era melhor que ela tivesse desenhado...

***

Terça-feira. Acordei com um barulhão e corri pra janela, pra ver qual era o quiproquó da vez no sanatório.

Tava rolando uma passeata de apoio ao chefe do hospício, que tinha se oferecido como cobaia pra testar a cloroquina e demonstrar a efetividade da compra de 1,8 milhões de comprimidos da droga.

Mais de 70 mil ex-internos do manicômio, entre homens, mulheres e crianças, carregavam placas em forma de cruz, que iam fincando na frente do escritório central.

Todas com os mesmos dizeres:

“O ministério da saúde adverte: sobreviver faz mal à economia”.

***

Quarta-feira. Passei o dia todo sonada...

É que minha vizinha de quarto saiu daqui tarde da noite, ontem, preocupada com um pedido extraoficial de acesso a cadastros médicos sigilosos dos internos.

Ela disse que o argumento era formar uma base de dados, pra unificar as operações na área da saúde mental.

Mas Piti teme que seja estratégia pra concentrar poder e punir ou recompensar, de acordo com a vontade do reizinho de plantão...

Pra completar, acordei no meio da noite com uma luminosidade estranha entrando pelas venezianas.

Me levantei e fui olhar o que estava acontecendo.

Era a luz de um laser projetando na parede do escritório central do sanatório uma conhecida frase de Maquiavel.

“Aos amigos, aos principezinhos, aos amigos dos principezinhos, os favores; aos inimigos, a lei!”

Fiquei tão irritada! Além de terem errado a citação, madrugada lá é hora de manifesto político literário?

Aras Ora bolas!

***

Quinta-feira. Hoje eu tomei um susto tão grande, que saí correndo e gritando socorro... Só parei porque Piti me deu uma rasteira e eu caí no chão.

É que eu pensei que tinha gente morando comigo, sem eu saber, porque abri o closet e não reconheci as roupas de sair...

Com detento especializado em invadir casas solto por aí, é um risco, né?

(pisc).

***

Sexta-feira. Sandra chegou aqui mais mal-humorada do que Piti quando tem que lavar compras, vomitando impropérios contra o chefe do escritório central.

— Tá administrando a pandemia na base do “É proibido proibir”!

De novo, fiquei sem entender a razão da revolta, porque a frase é uma das máximas do levante social de 68 — um movimento libertário, de celebração à vida, então...

Só pensei, não falei nada, porque tô cansada de tomar cascudo, mas parece que ela sempre adivinha o que relampeia em meu juízo...

— É proibido proibir a circulação sem máscara em shoppings, indústrias, templos religiosos, escolas, estabelecimentos públicos, prisões, unidades socioeducativas...

Mesmo com os 2% de cérebro que sobram quando tô biritada medicada, eu entendi a proposta de pensar às avessas, e entrei no jogo.

— Nossos ídolos não são os mesmos!

Mas ela perdeu a partida, porque replicou com o avesso do avesso...

— E as aparências não enganaram, né?

***

Sábado. Piti tava quase indo embora pro quarto dela quando Sandra chegou.

Disse que era visita rápida, só pra avisar que o sanatório ia se transformar num grande laboratório de teste de vacina contra o coronavírus.

Mas Piti estranhou.

— Uai... e vai sobrar cobaia da Operação Moneta?

Aí, quem estranhou fui eu...

— Operação o quê?

Bastou pra elas me olharem com aquela cara que vocês já sabem...

— Operação mata-rato, do Ministério Público, conhecida como Juno Moneta, em referência ao templo romano onde eram cunhadas moedas...

E saíram me chamando de estraga-piadas...

Aiai...

***

Domingo. Fui deitar pensando na ideia de ídolo às avessas, e comecei a ler um poema que Sandra me recomendou — “No caminho com Maiakóvski”, de um tal Eduardo Costa.

Aí, adormeci, e acabei sonhando com um patife pastiche:

No primeiro ano eles se aproximam
e contam uma mentira
sobre nosso país.
E não dizemos nada.
No segundo ano, já não se escondem:

pisam em nossos ideais
matam nossos sonhos,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
assalta sozinho nossa nação,
rouba-nos a democracia, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz e a vida.
E já não podemos dizer — ou fazer — nada.

Tasquei anti-insurreissivo sonífero no livro, tomei uma dose tríplice de álcool 70 e voltei a dormir.

Acordei com uma ressaca...

Será por que, minha gente?

(porque hoje é domingo...)