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A quarentena segue firme e forte no apartamento. Aulas escolares das minhas filhas pela internet, a brincadeira do lobo mau, os pegas de patinete, as apresentações artísticas, exposições de pinturas sobre papelão. A novidade é um aquário. Três peixes. Tinha um que chegou meio fraquinho. "Vamos salvá-lo, papai. A gente tem que salvá-lo", diz minha filha. E eu, cético, pensando que não ia adiantar, "que tudo é inútil", lembrei-me que tentar salvar já é salvar. E qual seria o sentido de existir senão para salvar? E não é que conseguimos?
E se hoje, em todo mundo, fosse escolher um guia espiritual, um "Guru", um Osho, um Lao-Tsé, um "Mentor", depois de carregar na alma tanta amargura, depois de tanta tinta que li rabiscada, de tanto calhamaço: certamente escolheria uma criança.
Porque as crianças possuem tudo que um escritor necessita para resistir a esse mundo: o olhar virgem, a ternura, a esperança, a simplicidade criativa renovada e revigorada, a investigação latente, a coragem de zombar de si e da própria alma - como se tivesse uma força superior a ela -, já que criança é a própria fonte de energia; e ainda não sabe o significado complicado e questionável de palavras como alma, moral, indulgência, patrimônio, subjetividade, fundação, filantrópica, pátria, prognóstico, religião, obséquio, estapafúrdio, adstrito, prolegômeno, fake. No vocabulário infantil não existe a palavra impossível. Tudo é Deus!
E, ao ver um homem, um semelhante ser assassinado, ao vivo e à cores, ao ver milhares de valas abertas, mães em pranto, a fome devorando outras crianças: sinto uma vergonha profunda de ser adulto. Como se eu fosse um Fausto miserável, uma besta fera ouvindo um velho blues, com a pena hesitante na mão, travado, dedilhando num teclado de plástico coisas que suplicam por silêncio; ou talvez: paz e perdão. Mas que tem um nome: monstruosidade.
E, provavelmente, Victor Hugo esteja certo, o momento não é próprio para pronunciar a palavra amor. Não é mesmo. Somente no futuro, bem lá no futuro, onde não haverá trevas, nem raios de crueldade, nem a ignorância feroz, nem a sangrenta pena de talião. Não haverá mais satã: Miguel deixará de existir.
No tal futuro de Hugo, ninguém matará o semelhante. Imaginem só! Linda, linda utopia! O amor reinando, o vale de lágrimas secando. Mas sou ansioso, irmãos. E querem saber? Não estou lá; estou bem aqui, no meio de um tiroteio mundial, algo me chuta o peito e quer viver, e nem podemos afirmar que um dia chegaremos a ver tal mácula mostruosa desaparecer da face da Terra.
Pronuncio a palavra amor porque a vejo em carne e osso. O amor anda de patinetes, me conta histórias, alimenta famintos, cura feridas invisíveis a olhos vulgares, dá bom dia pros pássaros que voam longe no céu cinza e até pras pessoas mal-encaradas na rua; o amor não compreende a maldade. Quer salvar o mundo! Ri sem motivo. É desarmado; é frágil e ao mesmo tempo luminoso como um sol. Como posso me calar diante de tamanha beleza e bondade? Diante da mais linda semente de Deus?