Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 15 (ou 15ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora:  se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

***

Segunda-feira. Sandra chegou aqui hoje contando que tinha adormecido pensando em Liverpool.

— Nos quatro rapazes?

— Não... nas 98 mulheres que estão testando uma vacina que pode nos restituir a liberdade.

Assim que ela foi embora, Piti entrou, cantarolando “Free as a bird”, o réquiem dos Beatles.

— O que será que houve com (what ever happened to)

— A vida que nós conhecíamos? (life that we once knew?)

— Sempre me fez sentir tão livre (always made me feel so free)

— Livre como um pássaro (free as a bird)

— Livre como um pássaro (free as a bird)

— Livre como um pássaro (free as a bird)

— [...].

Já perceberam que mesmo quando não se encontram, essas duas se conectam de alguma forma?

Ou é telepatia, ou armação... porque coincidência não é, certo?

(pisc).

***

Terça-feira. Minha irmã gêmea veio me ver de novo, no início da noite. Tava irrequieta, e disse que tinha novidades.

Não deu pra sacar de cara se eram boas ou ruins, então, esperei ela tirar a máscara e explicar.

Ela informou que estavam querendo usar um remédio que ataca vermes como prevenção contra as consequências nefastas do coronavírus!

Pulei do sofá de tanta alegria!

— O impeachment vai sair?

Ela me olhou de um jeito que arrepiei, porque lembrei que os cientistas descobriram que encarar alguém por 10 minutos causa alucinações!

É que a falta de estímulo diminui a atividade dos neurônios, e o outro começa a derreter em sua frente, tipo filme de terror...

Eu já tô confinada, sem ter o que fazer, e entupindo o cérebro de anti-insurreissivos sedativos, então, não ia ver só um monstro, ia ver o rebanho todo, sacou?

Mas antes do deadtime, ela desviou o olhar abusivo e explicou que não tava falando de remédio constitucional, e sim de um vermífugo que degenera as células de parasitas.

E me perguntou se eu não tava com certa fixação...

Nem respondi.

Enchem minha cabeça com certos assuntos, depois acham ruim!

Presepada...

Né?

***

Quarta-feira. Sandra entrou na onda do carnaval antecipado de minha vizinha de quarto.

As duas entraram aqui cantando e dançando trenzinho — Sandra na frente, Piti atrás, com os braços esticados e as mãos nos ombros dela.

— Ô abre alas, que eu quero passar / Ô abre alas, que eu quero passar...

Perguntei quem era a compositora da vez, mas elas disseram que não importava, porque o refrão era só um “inganeis”...

— A ideia é ajudar a circulação do vírus pelo DF, pra disfarçar o desarme de ratoeiras.

Aff!

Entender essas duas tá mais difícil do que descontaminar alho e cebola...

***

Quinta-feira. Hoje, foi um pastiche produto literário de Piti que quebrou a monotonia de minha alcova.

Ela chegou aqui dizendo que tinha acabado de escrever um conto, e começou a ler pra mim.

— Cansado da solidão, um velho marreteiro fabricou um boneco cara-de-pau, que mentia, mentia, e o nariz crescia, crescia...

Interrompi a narrativa, porque observei “inadequações” no currículo curso da história, e conclui que era um pseudoconto, e não era inédito — era um plágio!

Mas a teimosa contra-argumentou, garantindo que era um conto, e era inédito, sim...

— É um conto do vigário!

Só que em vez de gargalhar, ela saiu chorando...

***

Sexta-feira. Tava de boa, deitada de costas no chão, perto da janela, apreciando o céu salpicado de estrelas, que ora se convertiam em asas cintilantes, ora escorriam pra Terra, deixando um rastro com as cores do arco-íris...

— Flores, flores!

— Flores para los muertos!

— Coronas, coronas!

— Coronas para los muertos!

Pois é... Foi desse jeito que Piti me interrompeu.

Entrou gritando e usando um camisolão preto, véu de tule sobre o rosto, chapéu de abas largas e flores nas mãos.

Depois, entrou Sandra. Vestia uma mortalha branca, um capuz estilo cone que ocultava a cabeça e a face, e carregava duas tochas acesas.

Acercou-se de Piti e anunciou que ela tinha sido condenada à forca, porque além de estar mercando flores, em vez de ódio, estava vendendo corona pra defunto, pra inflar o número de óbitos por Covid-19 no sanatório.

Comecei a rir, porque vi que elas tinham deturpado bestamente o significado de corona — coroa, em espanhol, portanto, “coroas de flores para os mortos”, na peça...

Acusei a molequeira infantil contra “Um bonde chamado desejo”, de Tennessee Williams, e esperei a rebarba...

Bateram palmas! E disseram que tavam me testando, pra ver se eram só os remédios que estavam afetando meu QI, ou se eu tava sendo cooptada e reproduzindo a demência de determinados internos do território sanatorial...

Pensei em tascar vermicida nas duas, mas vi que não ia afetá-las de jeito nenhum, concordam?

Aí, tasquei pesticida!

Não é que vazaram daqui rapidinho?

***

Sábado. Lembram do buraco que Piti tinha feito na parede que separa nossos quartos, pra a gente se comunicar, e as enfermeiras fecharam?

Então... Piti reabriu.

E logo hoje, que é dia de revisão médica, ela resolveu passar por ele, pra vir me avisar pessoalmente que o ar que respiramos está “envenenado, sufocando e asfixiando” todos.

Estranhei o sentido de urgência, porque todo mundo tá sabendo que o ar tá cheio de coronavírus, que ataca os pulmões e sufoca, asfixia, mata...

Mas ela argumentou que essa asfixia letal não é de agora, é milenar, e que não é provocada por vírus, mas por seres que se dizem humanos.

— É a iniquidade do racismo.

E me mostrou um cartão onde estava escrito “Movimento ar”, com o endereço http://www.anf.org.br/movimento-ar-combate-racismo-no-pais-com-campanha-de-cinco-anos/

Pra quem quisesse participar...

***

Domingo. Sandra ligou revoltada com a insensatez das pessoas frente à pandemia.

Querem-continuar-a-vida-como-se-nada-estivesse-acontecendo-mais-de-60-mil-mortos-e-tome-lhe-shoppings-piscinas-academias-bares-festas-drogas-rock'n'roll...

Queria muito parar a metralhadora giratória dela, porque não tinha nem escovado os dentes e ainda precisava tirar as compras da semana do castigo.

(é que depois de ensaboar, enxaguar, secar e passar álcool 70, deixo alguns pacotes de lado um tempo, antes de guardar no armário, por garantia...).

Enfim, tava sem tempo e, cá pra nós, sem disposição pra cri, cri, cri prolongado de manhã cedo, mas tentei ter paciência com o blá-blá-blá sobre “a burrice, a dificuldade de raciocínio, a falta de instinto de preservação”...

(as aspas são pra deixar bem claro que as palavras foram dela, tá?).

Fiquei ouvindo, contrapondo, perguntando, pedindo detalhes... Mas aí vi que o Jornal Nacional ia começar, e dei um basta!

Pedi pra ela resumir o nhem-nhem-nhem.

Acho que ela se ofendeu, porque se picou, resmungando algo tipo “tem gente que só desenhando”, e deixou uma folha de papel rabiscada com lápis de cor em cima da cama.

Aí, quem ficou ofendida fui eu, e liguei de volta...

— Por que não resumiu antes?

(já repararam que quando tô sem meus remédios fico tão intolerante quanto essas duas?).

(porque hoje é domingo...)