Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 14 (ou 14ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora:  se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

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Segunda-feira. Minha irmã gêmea resolveu produzir um debate sobre o enfrentamento à Covid-19. Em rede eletrônica, claro...

Explicou que era pra dar transparência às políticas públicas de controle da pandemia e às dificuldades que os chefes dos sanatórios estão encontrando para implementá-las.

O ponto alto do fórum virtual foi o intercâmbio de ideias entre os dirigentes de dois grandes manicômios — um localizado no lado norte do mundo; outro, no sul.

O chefinho do lado de baixo do Equador contou que tinha ordenado que o número diário de mortes ficasse abaixo de mil, mas não estava sendo obedecido, entre outras razões, pela resistência de alguns em transferir o manicômio do sul pro hemisfério norte.

O donald dono do lado de cima do globo lembrou que as fronteiras entre os hospícios estavam fechadas, e sugeriu que o cupincha, cúmplice, comparsa, coligado aliado lançasse mão da estratégia que ele tava usando pra baixar o número de contaminados por lá.

— Quando você testa tanto, você vai encontrar mais gente, mais casos. Então, eu disse para meu pessoal: ‘Por favor, reduzir a testagem’.

Mas o chefinho do sul ponderou que essa metodologia era ineficaz, porque já estava sendo empregada desde o início da pandemia, e os números no sanatório nacional continuavam subindo...

Como chegaram a um impasse, Sandra encerrou a transmissão, exaltando a qualidade dos debates.

— São ou não ideias dignas de representantes máximos de hospícios?

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Terça-feira. Parece que a mistureba que fizeram no calendário do sanatório tirou Piti de órbita (quer dizer, tirou mais de órbita, né?).

Em vez de focar no São João, ela continuou ligada no Carnaval — depois da marchinha que compôs, semana passada, foi a vez da fantasia.

Criou uma e veio me mostrar. Mas não entrou intempestivamente, sem pedir licença, como sempre faz. Bateu na porta e esperou.

Quando eu abri, ela estava de costas, com um camisolão branco, uma auréola dourada na cabeça e duas asas enormes, tocando o chão.

Achei linda, a representação do anjo dela, mas nem deu tempo de elogiar, porque quando ela se virou, tinha dois chifres na testa e um tridente na mão!

Na falta de água benta, tasquei água sanitária na tinhosa e bati a porta, pra ela não entrar nem inventar de botar ninguém pra dentro...

Já pensou se no meio desse caos sanitário eu ainda tivesse que aturar outra pessoa morando aqui em meu quarto, dormindo em minha cama, comendo minha comida, consumindo minha água, gastando minha luz... tudo isso sem eu saber?

Todo cuidado em abrir a porta agora é pouco, porque é o golpe da hora, tá ligado?

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Quarta-feira. Sandra veio me alertar sobre outra praga que estava ameaçando o sanatório nacional.

Caí no choro, porque não vi como a gente ia conseguir se proteger contra mais um atentado à democracia, ao processo civilizatório, aos direitos humanos, à vida!

Mas ela atenuou meu pavor: disse que apesar de serem numericamente superiores, os insetos da vez eram menos perigosos, porque não discriminavam, não oprimiam, não escravizavam, não torturavam, não assassinavam...

Depois de explicar que eram gafanhotos famintos atacando plantações, Sandra me abraçou, me deu um beijo na testa e disse que tava orgulhosa da associação instantânea que eu tinha feito quando ela mencionou a palavra praga...

Carente como tô nesse isolamento, me derreti toda, mas como gato escaldado tem medo até de água fria, fiquei imaginando que marmota ela tava armando...

Porque é sempre preocupante quando essas duas me elogiam... (sinal de retrocesso em meu tratamento, ou pegadinha, já perceberam?).

Via das dúvidas, assim que ela saiu, tomei meus anti-insurreissivos calmantes e fui assistir reprise de Big Brother.

Será que exagerei na dose?

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Quinta-feira. Acordei e dei de cara com Piti no meu quarto. Só que dessa vez ela tava no módulo esfinge dela: pensativa, enigmática, impenetrável.

Quando cheguei perto, vi que ela tava resmungando, mas era tão baixinho que só dava pra escutar palavras soltas, tipo corrupção, campanha, justiça, promessa, eleição, combate...

Fiquei tranquila, porque vi que não era nada estranho ao universo de ruminações dela. Mas aí ela fez uma pergunta meio... digamos assim... ponto fora da curva...

— O que limpa tem que tá limpo, senão não limpa, suja, né?

Eu não entendi...

E você? Morou?

(pisc).

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Sexta-feira. Sandra me ligou mais pessimista do que de costume, porque tinha ouvido falar que além da pandemia, os sanatórios do mundo todo estavam tendo que enfrentar uma crise econômico-financeira gravíssima.

Como ela tava deprê, procurei fazer com que pensasse por outro ângulo, lembrando que nosso sanatório tinha um povo criativo, que com certeza iria dar a volta por cima, encontrando formas alternativas de sobrevivência, e tal e tal.

— Humhum... Já tem gente se virando mesmo...

Confesso que tinha falado por falar, não esperava que ela entrasse na minha onda, mas como entrou, e sou curiosa, perguntei de quem ela tava falando.

— Jogador de futebol. Fazendo pilantropia...

Entendi que ela quis dizer filantropia (devia tá pensando em latim, e esqueceu de trocar o som do ph pelo f...). Mas não corrigi, pra não estragar a virada do astral.

Fiz bem?

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Sábado. Os médicos não vieram aqui hoje. Quem apareceu foi Piti, com uma vassoura na mão, me chamando pra participar de um mutirão de limpeza.

Nem acreditei no que estava ouvindo, porque só tendo espírito genocida pra provocar, deliberadamente, aglomeração numa pandemia...

Mas ela explicou que o faxinão ia ser nos moldes do nosso novo normal: cada um no seu quadrado, compartilhando virtualmente as imagens.

Bem... aí já eram outros quinhentos, né? Então, topei. E perguntei que tipo de dejeto a gente tinha que varrer.

— Intolerância, homofobia, fascismo, racismo, obscurantismo, terraplanismo...

Ponderei que então a gente tinha que ir pro quarto dela, porque no meu não tinha esse tipo de sujeira não!

Ela ficou parada um tempão, com a testa franzida, me olhando, e disse que não sabia se me beijava ou me batia; se ria ou se chorava...

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Domingo. Tava zapeando pelas redes sociais, quando notei um movimento atípico em uma delas, e parei pra observar.

Dos mais variados cantos da arena virtual surgiam perfis, que dobravam, invariavelmente, à esquerda, e iam seguindo uns aos outros, até formarem uma grande marcha digital.

Não eram robôs, eram gentes das mais variadas matizes sociobiológicas, econômicas e étnico-culturais, portando bandeiras e imbuídas de um só propósito: derrubar o fascismo.

Empunhei a minha e adormeci.

Quando acordei, tinha um cartaz com a letra de Sandra e os seguintes dizeres:

(porque hoje é domingo...)