Foto: Suzana Varjão
Nota da escritora: se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!
Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!
***
Segunda-feira. Minha irmã gêmea e minha vizinha de quarto estão com a mania de virem juntas pros meus aposentos, já perceberam?
E ficam me provocando, torrando minha paciência preu parar de tomar ou diminuir meus anti-insurreissivos psicotrópicos.
Pra ver se elas me deixavam em paz, acabei concordando em aplicar a metodologia do dia-não-dia-sim em minha medicação (aquela, do meio ambiente, lembra?).
Mas como sábado tem revisão médica, não posso deixar de tomar todas todos os comprimidos na sexta, porque os psiquiatras podem perceber o experimento, tá ligado?
Então, hoje tinha que ser remédio-sim, pro revezamento dar certo — daí tomei uma dose dobrada logo cedo, pra aguentar o tranco da terça.
Sandra e Piti reclamaram um pouco do meu excesso de precaução, mas ficaram de boa... Até brincaram de “quem é quem é que pode transmitir?”
Não quis entrar no jogo, porque não queria perder a videoconferência sobre “aprenda a instalar olho mágico em sua porta de vidro nessa quarentena”.
Mas fiquei com um ouvido no padre, outro na missa, e achei o passatempo interessante... informativo...
Uma perguntava, a outra respondia, alternadamente.
Piti: vírus da AIDS?
Sandra: macaco
Sandra: da gripe aviária?
Piti: frango
Piti: da febre hemorrágica?
Sandra: roedores
Sandra: da covid-19?
Piti: morcego
Piti: da gripe espanhola?
Sandra: porco
Sandra: da demência?
Percebi que Piti não tinha respondido, e olhei pra elas. Tavam caladas, sérias, me encarando acintosamente...
Tudo bem que eu demorei, mas quando a ficha caiu, tasquei álcool 70 nas duas com meu spray e enxotei do quarto!
Vai que minha imunidade tá baixa...
Né?
***
Terça-feira. Hoje eu é que fui no quarto de Piti.
Tava com a consciência pesada por causa de minha atitude sem compaixão de ontem, e queria pedir desculpas, saber como ela tava se sentindo, oferecer ajuda...
Me armei de coragem (o que significa dizer de álcool 70, máscara cirúrgica, protetor facial, luvas, macacão impermeável, botas...) e fui, antes mesmo de amanhecer.
Devo confessar que mesmo com meus equipamentos de proteção, só ousei sair do quarto porque tava sem os remédios que me impedem de falar e fazer loucuras...
Bem, fato é que fui, e encontrei Piti no módulo ignorar: sentada na cama, de costas, mão no queixo, cabeça baixa... estilo a pensadora, mas na verdade, na posição de isolamento dela, quando se chateia comigo.
Só que quando ela se virou, vi que não era ela, que era Sandra, e que eu não tava no quarto dela, tava no meu!
Dei um grito tão alto, que veio médica, enfermeira, segurança, faxineiro, cozinheira, copeiro, lavadeira…
Resumo da ópera: me proibiram de continuar com a metodologia do dia-sim-dia-não e triplicaram a dose de remédios.
Melhor assim, concorda?
***
Quarta-feira. Piti passou um áudio contando mais uma novidade do sanatório.
Disse que tinha sido lançada uma campanha pra melhorar a comunicação do escritório central, com vinheta e tudo. Olha só a letra:
— O chefinho vem aí!
— Olê! Olê! Olá!
— O chefinho vem aí!
— Olê...
Juro por todos os santos que já ouvi essa melodia...
Ou será impressão minha?
***
Quinta-feira. Você sabia que 20 de março é o “Dia do contador de histórias”?
Nem eu.
Quem me informou foi Piti, e disse que ia celebrar a data com uma história descarada… ops… acho que foi com uma história de charada… ou será que foi com uma charada histórica?
Bem, isso não tem importância… Ou será que tem? Deixa pra lá!
Fato é que estranhei, porque não estávamos em março, mas ela fez um troca-troca bizarro de datas e disse que se teve gente pulando fogueira em maio, ela podia muito bem festejar o tal dia em junho.
E disparou uma narrativa tão curta quanto o pavio dela.
— Era uma vez um soldadinho de chumbo de um neurônio só. Armou tanta barraca tanto barraco, que acabou derretendo nos fogos de winter inverno... que dó!
Entendi que ela tinha feito uma síntese do conto de Hans Christian Andersen, mas tive que acusar o desvio em excesso da trama...
Ela virou as costas e saiu gritando:
— Entrou por um ouvido, mas também só tinha um miolo, quem quiser que encontre o outro!
Oxe... depois quem tá ficando retardada sou eu...
***
Sexta-feira. Piti tá bem musical essa semana. Me ligou eufórica, pra contar que tinha decidido ser compositora.
Saca só o refrão da marchinha que ela criou pro próximo carnaval:
— Ai, ai, ai ai, ai ai ai!
— Está chegando a hora!
— O povo já tá cansado, meu bem!
— E tu tens que dar o fora...
Cantou e pediu minha opinião!
—Taokay?
Respondi com um trecho da música Aroeira, de Vandré
— Vim de longe, vou mais longe
— Quem tem fé vai me esperar
— Escrevendo numa conta
— Pra junto a gente cobrar
— No dia que já vem vindo
— Que esse mundo vai virar...
Minha vizinha de quarto a-do-rou!
Aí, fiquei preocupada...
Por que será que fiz essa associação?
Quer dizer... que associação será que ela acha que eu fiz?
***
Sábado. Outro sábado completamente só. Nem sinal de Piti, muito menos de Sandra, que bateu recorde de silêncio, depois da confusão da segunda.
Os médicos sempre elogiam quando minha irmã gêmea e minha vizinha de quarto não aparecem. Acham que é sinal de que estou evoluindo, controlando melhor alguma coisa que não entendo bem, tipo luta de contrários... (tsc tsc tsc).
Mas hoje reclamaram de minha agressividade, como se o mau humor de Sandra fosse meu! Vi que tinham confundido as pessoas, mas fiquei na minha...
Fiz bem?
***
Domingo. Acordei com um coquetel de sons ecoando em minha cabeça: marretas, britadeiras, martelos, serrotes, vidros estilhaçando...
Corri pra minha janela e vi que estavam derrubando um reservado do manicômio.
Das paredes rachadinhas rachadas brotava uma espécie de pasta, densa e malcheirosa, que tomava as ruas e escorria pelos bueiros.
E à medida que as paredes iam desmoronando, um odor cada vez mais fétido ia se espalhando e empesteando o ar.
Quando os últimos tijolos ruíram, uma cortina de pó branco encobriu o canteiro de obras, mas ainda assim foi possível visualizar o que havia dentro do puxadinho que desabara:
Dinheiro, fuzis, granadas, revólveres, facas, machados, serras elétricas, instrumentos de tortura, boots, kits anti-gays, anti-mulheres, anti-negros, anti-humanistas, anti-democracia, toneladas de cloroquina, e, principalmente, ódio.
Debruçada na janela ao lado, Piti observou que o desabamento estava abalando a estrutura do escritório central do sanatório, que era colado, parente parede com parede, ao gabinete sob desmonte.
E me contou que, finalizada a demolição, o entulho autoritário residuário será removido, para, no espaço do escritório de distopias, ser (re)erguida uma oficina de sonhos.
O dia foi tão atípico no manicômio nacional, que cheguei a achar que tinha confundido realidade com ficção!
(Toc, toc, toc, pé de pato, mangalô, três vezes...)
(porque hoje é domingo...)