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De onde vêm os navios que vemos no horizonte? Para Ryszard Kapuscinski, foi para responder a essa pergunta formulada na infância que Heródoto viajou o mundo e, com seus relatos reunidos numa extensa e magnífica obra de história, deu à luz à primeira grande reportagem da literatura mundial.
Kapuscinski foi um jornalista polonês que, assim como Heródoto, vagou por todo canto, com o intuito de descrever o mundo que o cercava. Numa linguagem sagaz e cheia de humor, o autor que aprendeu inglês lendo Hemingway, narra no livro "Minhas viagens com Heródoto: entre a história e o jornalismo" como se viu atirado a locais remotos e enigmáticos, como a Índia e a China, tendo Heródoto como estrela-guia.
"Papai, vamos atravessar o mar para ver o que tem do outro lado?" Enquanto minha filha me convida para mais uma aventura imaginária pelo apartamento, reparo que está tocando "Break on Through" na caixinha de som. Ela pula o escorregador, pula duas almofafas que estão no chão, e diz para tomar cuidado porque as ondas estão perigosas e monstros e piratas podem nos atacar no meio do mar. E que preciso "ser corajoso". E sublinha: "Você é muito corajoso, papai. É muito forte!"
Sinto um aperto no peito. Percebo que estamos na companhia de uma jornalista mágica, uma Kapuscinski mirim. Ela não quer apenas saber de onde vêm os navios, mas também o que nos separa do outro lado, dos outros mundos, o motivo de tantas grades, como são os nossos vizinhos, como se vestem, o que pensam, quem mora no fundo do mar. E vejo Heródoto, o "Pai da História", que escreveu a narrativa das guerras greco-pérsicas, ouvindo "The Doors" com a gente, da mesma forma que foi ouvido pelo jornalista polonês.
O grego pula as ondas, ri, balança a pança; pergunta se temos também um Demis Roussos, um Mozart, um Thin Lizzy.
Na escrivaninha ao lado minha outra filha desenha nosso planeta como quem faz uma oração - o sol brilha sobre suas mãos sujas de tinta e sobre o desenho -, presto atenção e meu coração se acalma.
Fecho a porta do inferno com Dante e todos os seus demônios e cantos e berros e gemidos: enfio todos numa caixa de ferramentas, tranco com cadeados.
Escolho outra trilha. Coloco "I'm New Here", de Gil Scott-Heron. Heródoto tem a noção de que o contato com outros povos e culturas serve como espelho para que possamos estudar melhor a nós mesmos.
Mas me diz que minhas filhas já sabem disso e que eu me esqueci de tudo. De tudo! E completa: "Mas eu também sou novo aqui, está tudo bem".
Uma linda italiana disse num filme (perdão pela assertividade): "Não dá para desfoder o que foi fodido". O que fizemos conosco e com o nosso planeta? Seremos quebrados por dentro? O mar está mais bravo do que antes, não sei se chegarei vivo do outro lado; e nem se existe o outro lado. Mas já não importa mais.
Eu parei de roer as unhas porque quero ter mãos livres como os socos do coração. Nadar é preciso. E nadar até onde os braços aguentarem. Nadar até minhas filhas, nadar até você.
Meu nariz nunca se acostumou com a fetidez do nosso mundo, cheiro este que Dante magistralmente registrou em "poemas" e nos jogou na cara e chamou de comédia e chamou de divina e enfiou até um paraíso lá dentro.
Olho pro planeta desenhado por minha filha e penso como algo pode ser tão lindo e colorido. E ela escreveu "mundo de todo mundo".
Um sorriso inocente de criança banguela pode não mover montanhas, mas pode ser a força necessária para atravessar o oceano gelado e inóspito de nossas almas. Se erramos, e erramos enquanto raça: a esperança é criança e é banguela. E ela precisa viver!
Sem esses Dom Quixotes pequeninos e bondosos, a humanidade estaria perdida. Eles contarão nossa história, algum dia, do outro lado. Não serão os Pizarros que dizimam índios e muito menos os Hamlets enfadonhos que duvidam do bem e só acreditam no mal - ocupados exclusivamente em seus pensamentos ("veja a musculatura e a venusitude da minha genialidade, Horácio!"; "ser ou não ser um mala?") e suas vinganças -, que farão isso.