Foto: Suzana Varjão
Nota da escritora: se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!
Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!
***
Segunda-feira. Sandra e Piti entraram aqui vestidas de preto, com velas acesas nas mãos e entoando um cântico fúnebre.
Gelei, porque percebi logo que alguém tinha morrido… e pelo visto, a vítima era muito próxima, muito querida!
Fiquei com medo de perguntar, mas tinha que saber, então perguntei — a voz tremendo mais do que as pernas em dia de entrega e lavagem de compras.
— Quem morreu, gente?
— A ética!
Achei estranho, e perguntei se não tinham errado o sobrenome da vítima (ou o apelido, sei lá eu…), porque alguém tinha acabado de anunciar a morte da verdade...
— Ou será que estão inflacionando o número de óbitos?
Tomei tanto peteleco nas orelhas que tão doendo até agora...
Só pondo camisa de força nessas duas, pra elas pararem com essas loucuras!
Tô certa ou não?
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Terça-feira. Tava cumprindo minha obrigação ecológica, na maior paz, quando minha vizinha de quarto escancarou a porta do banheiro e gritou:
— Afugentaram os assaltantes!
Quase caio dura! Nem sabia que o manicômio tinha sido invadido, gente!
Aos trancos e barrancos, Piti tentou explicar, mas em vez de esclarecer, me confundiu ainda mais.
Pra início de conversa, disse que eram 300 marginais!
Eu arregalei os olhos, como é que 300 meliantes sitiam o sanatório nacional e ninguém vê nada, ninguém ouve nada, ninguém diz nada!
(Mas só pensei, tá? Falei nada não, pra não tomar mais peteleco...).
Aí, fiz minha melhor cara de paisagem e perguntei se eles tinham chegado a roubar alguma coisa.
— Nossas cores, nossa bandeira, nossa identidade...
(Vixe... acho que Piti não sai mais daqui não...).
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Quarta-feira. Minha irmã gêmea chegou aqui hoje gargalhando. Estranhei, porque a vida não tá pra riso, né?
Mas Sandra disse que era porque tava se sentindo orgulhosa, e contou que uma amiga dela, uma tal de Luiza Ávila, tinha conseguido modificar, com sucesso, a fórmula de uma substância que expurgava o coronavírus.
Vibrei, também, mas fiquei sem entender por que o medicamento não tava sendo ministrado pra tratar as pessoas!
Ela explicou que era porque a liberação do uso tava seguindo a metodologia do dia-sim-dia-não, adotada para a proteção do meio ambiente, e o momento era de presta-não.
Mandei ela desembuchar o nome da droga, preu estocar logo, porque é claro que ia faltar no mercado, né?
Sandra não se fez de rogada.
— É a cocoquina.
E me aconselhou a aplicar a metodologia com meus remédios, tipo tomar na segunda, não tomar na terça...
Pensei em acatar a sugestão, mas fiquei meio desconfiada, porque ela disse que era pra desanestesiar, aos poucos, meu juízo...
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Quinta-feira. Sandra me passou um zap anunciando que ia voltar pra escola, porque tinham reinventado a língua portuguesa!
Disse que pelas novas regras ortográficas, impressionante agora se escrevia imprecionante; paralisação agora era paralização; suspensão era suspenção...
Pensei que era coisa séria, mas vi que era brincadeira, porque quando perguntei quem era o autor das novas regras, ela respondeu que era o sinistlo da educação.
Ou será que eu pensei que era brincadeira mas vi que a coisa era séria?
Fiquei em dúvida…
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Sexta-feira. Sextou! Dia de cachaça remédios dobrados, pra consertar... Ou seria concertar, pelas novas regras ortográficas?
Bem, melhor usar outro termo... Pra corrigir os desvios de pensamento e enxergar o mundo sem o pessimismo irritante de determinadas pessoas...
Tomei todas todos os meus comprimidos e fui dormir sorrindo, porque consegui ver um brasilo asilo diferente do que a mídia esquerdista pinta: sem racismo, sem homofobia, sem fome, sem degradação ambiental, sem violências, sem ginofobia...
Um paraíso azul e rosa, no qual meninos e meninas sobem em goiabeiras pra bater papo com Jesus e comem mangas — tão nutrientes, mas tão nutrientes que dispensam outros alimentos.
Enfim... um sanatório perfeito!
Ou seria um perfeito sanatório?
(pisc).
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Sábado. Pensei que essa semana não veria mais nem Sandra, nem Piti, porque em geral, os remédios dobrados da sexta funcionam como pó de pirlimpimpim — teletransportam as duas pra longe de minha mente.
Ou será que é minha mente que é teletransportada pra longe delas?
Bem, não importa, o que importa é que elas apareceram — e cá pra nós, antes não tivessem aparecido...
Chegaram avisando que estavam chateadas comigo, e me propuseram um "papo reto".
Não sabia onde elas queriam chegar com essa de "papo reto", mas pra não piorar as coisas, respondi 'tá de boa, vamos nessa'!
Aí, começou o falatório sem pausa delas: que estamos vivendo uma época de totalitarismo delirante;
...que os limites entre verdade e mentira estão cada vez menos nítidos ("até o nazismo virou ideologia de esquerda!");
...que o país sanatório se transformou num Big Brother, onde todos vigiam todos e tudo ("...experimenta comprar peixe via internet, pra ver se no outro dia seu Face não enche de propaganda de peixaria!");
... que até Polícia de Ideias tinham criado ("...acha que vigiar professor em sala de aula é o quê?");
... que o mundo virtual era uma ameaça, porque apesar de abstrato, produzia efeitos na vida concreta...
— Até governar se governa por Whatsapp!
Vi que elas deviam estar fazendo confusão entre realidade e ficção, porque o enredo parecia de um romance de George Orwell, mas fiquei quieta, pra não criar atrito, e entrei na onda do governo virtual. Disse que tinha lá suas vantagens, era até bem prático...
— Você implanta um programa social. Se não der certo, é só deletar!
Pra encurtar conversa: se picaram dizendo que eu não tinha mais jeito, que não adiantava nem parar de tomar remédio, que a única solução era resetar meu cérebro!
Fiquei com tanta raiva que nem consegui responder!
(ao contrário de Alan Poe, acho que alguns pensamentos estão fora do alcance das palavras...).
***
Domingo. Sandra chegou hoje aqui com um livro nas mãos: “1968 — o ano que não terminou”.
Disse que era preu me reconectar com a realidade, porque minha mente tava ficando obsoleta...
Ignorei a afronta, mas fui conferir a história, que relata os acontecimentos em um dos anos mais sombrios da ditadura militar de 1964 — época de supressão geral de direitos, prisões, exílios, sequestros, torturas, estupros, homicídios, “sumicídios”...
Mas foi em 68 que os “anos de chumbo” foram consolidados, com a edição, numa sexta-feira 13 de dezembro (toc, toc, toc...), do mais feroz dos instrumentos usados pelo regime autoritário — o Ato Institucional número 5.
E o AI-5 funcionou como uma espécie de carta branca para ampliar o estado de exceção, resvalando no fechamento do Congresso Nacional; no recrudescimento da censura; no confisco de bens privados; intervenção nas universidades públicas, nos estados, municípios...
Interrompi a leitura, com medo de ter um pesadelo daqueles, porque se teve tanta desgraça em um ano que não terminou, imagina no ano 2020, que nem começou, gente!
Mas aí Sandra, que não arredou pé do meu juízo quarto, aliviou minha angústia. Disse que o chefe do sanatório resolveu minimizar as manifestações em prol do AI-5.
Segundo minha irmã, ele chamou os números 1, 2, 3 e 4 de seu gabinete, e, juntos, sugeriram que, em vez de AI-5, os apoiadores agora exaltem o E DAÍ-5!
(porque hoje é domingo...)