Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 11 (ou 11ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora:  se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

***

Segunda-feira. Abri meu zap hoje e me deparei com um cartão enviado por minha irmã gêmea com o título “Remake”.

Entrando no link, havia imagens de homens, mulheres e crianças morrendo nas portas dos hospitais por falta de atendimento médico; pilhas de cadáveres insepultos ou enterrados em valas comuns; cidades desertas...

O texto explicava tratar-se de cenas da pandemia disseminada no mundo a partir da China, cuja população contraíra uma doença grave, manifestada, entre outras afecções, por meio de uma inflamação severa dos pulmões.

Altamente contagiosa, a enfermidade era rapidamente transmitida pelo contato com pessoas infectadas, principalmente por meio de espirros e gotículas que os portadores emitiam ao falar.

Por completa ausência de meios para imunizar as pessoas, às autoridades não restara alternativa senão impor o isolamento social, para evitar a propagação da moléstia, impedindo até mesmo que as pessoas se despedissem de entes queridos, quando esses partiam...

Confesso que fiquei um pouco impaciente e interrompi a leitura, porque não tava entendendo onde ela queria chegar com a descrição, ipsis litteris, de uma coisa que todo mundo tava vendo ao vivo, em detalhes e em cores!

Falei isso pra ela, mas a malcriada me chamou de “exímia representante da geração fast-tudo” e me mandou ler a postagem até o final…

Só que ela não aguentou a carinha de cachorro sem dono que eu faço quando ela briga comigo, e adiantou que o relato não era sobre o caos humanitário de agora. Era sobre a peste negra, que matou um terço da população europeia no século XIV!

— Mas as estatísticas eram muito falhas. Acredita-se que na verdade metade da população foi dizimada.

Bem, acabei passando o olho no resto do texto, e vi que havia distinções entre as pandemias uma das mais significativas, que a peste foi causada por uma bacteria presente em ratos, não por vírus, como agora.

Mas fiquei impressionada com a similaridade das tragédias, e perguntei se tinha algum diferencial em relação a procedimentos, providências, comportamentos… Afinal, uma experiência avassaladora dessas deve ter produzido algum aprendizado, né?

O diferencial é que a ignorância genocida da peste data da idade média, e a do coronavírus, da “idade mídia”, como o amigo albino de Piti apelidou a era das fake.

Debochou e começou com o nhem-nhem-nhem sobre a humanidade estar condenada a voltar indefinidamente ao ponto de partida...

Fiquei matutando sobre a irrelevância dessa preocupação de Sandra, porque tudo meio que se repete nessa vida, né? Toda semana, por exemplo, tem segunda-feira, terça-feira, quarta-feira…

Até pensei em rebater o lenga-lenga com um “e daí?”,  mas desisti, pra não parecer provocação.

Fiz bem?

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Terça-feira. Outro bate-boca entre Piti e Sandra, que agora deram de vir aqui às escondidas. Motivo da vez: a sangria desatada dos cofres públicos do sanatório.

Minha vizinha de quarto acha que o problema está nas lacunas da legislação, nos desajustes do sistema político, na insuficiência de fiscalização, na impunidade... Teria jeito de acabar com a roubalheira, pois.

Sandra acha que não, que o problema está na natureza humana, que qualquer que seja a caixa de ferramentas político-administrativas, cedo ou tarde lá estarão os larápios, voejando em torno do erário, que nem mosca em lixão.

— Você já viu pedófilo rondar asilo de velho?  Não, né? Vai pra porta de escola, onde tem matéria prima farta...

Achei a imagem despropositada, e Sandra, pessimista demais. Não queria, mas acabei me envolvendo, pra levantar o astral dela.

Não tem "Dia do índio", "Dia da mulher", "Dia do deficiente?" Então... É só instituir o "Dia de não roubar". Com o tempo, gera consciência, resolve o problema...

Penso que nenhuma das duas gostou da ideia...

Saíram batendo porta.

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Quarta-feira. Minha irmã gêmea ligou e começou a cantar trechos da música “A momentary lapse of reason”, que, traduzidos, dizem mais ou menos o seguinte:

...e todas as tentativas falharam para parar a violência / o resultado foi claro [...] / uma nova espécie nasceu, uma sociedade em fragmentação / com caminhos separados...

Achei legal ela estar cantando, mas vi que estava triste, e perguntei o motivo.

Ela disse que não estava só triste, estava revoltada, e em vez de cantar, recitou, quase gritando, versos de “Animals”.

— Ei, você, Casa Branca, ha ha, adivinhe o que você é? / grande ratazana orgulhosa da cidade, ha ha, adivinhe o que você é? / você está tentando manter seus sentimentos afastados das ruas...

Sandra deu uma pausa, eu aproveitei pra perguntar o que ela queria com aquilo.

Em vez de responder, ela berrou o título de outra música.

Wish you were here!

(queria que você estivesse aqui!)

— Pink Floyd?

— Não. O black. George Floyd.

(não sei por que, fui dormir sentindo falta de ar…).

***

Quinta-feira. Acordei prostrada, como se estivesse de ressaca, sem vontade de sair da cama, de ler, de escrever, de comer, de pensar...

Mas aí Piti bateu na minha porta e me disse que um amigo dela, um tal de Nestor Mendes, tinha me mandado um telegrama fonado, com um recado de um anjo negro.

(ou será que ela disse que era de uma negra que era um  anjo? Ah! Lembrei! Era um recado de Maya Angel Angelou).

O curioso é que a voz da gravação dizia coisas tristes, mas meio que sorria…

— Você pode me riscar da História [...] / Pode me jogar contra o chão de terra [...] / Você pode me matar em nome do ódio / Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar [...] / Da favela, da humilhação imposta pela cor [...] / Eu me levanto [...] / Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado / E assim, eu me levanto / Eu me levanto / Eu me levanto.

E não é que dessa vez, em vez de me aborrecer, ela me animou?

Quem será que tá pirando piorando, pra a gente chegar nesse denominador comum?

Cê acha o quê?

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Sexta-feira. Assisti outro filme sinistro, hoje. Na trama, uma comunidade branca sequestrava negros e os escravizava.

Mas os grilhões não eram convencionais.

Os dominadores faziam lavagem cerebral para manter os dominados sob controle e roubar-lhes tudo: do corpo físico à consciencia passando, inevitavelmente, pela cultura.

Mas um deles, de quem pretendiam tomar os olhos, quebrava o ciclo das violências físicas e simbólicas e destruía a célula da supremacia parasita.

Corri pro zap, pra contar a história pra Sandra, já esperando um esperneio do contra, mas ela gostou...

Escreveu que era “uma história digna da Palmares”!

Ela quis dizer que era uma história digna de palmas, claro, mas eu não quis corrigir, pra não parecer pernóstica...

Entendeu?

(pisc)

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Sábado. Dia de revisão médica atípico. Não era pra eu receber visitas, mas Piti entrou aqui no quarto aos prantos, por causa da morte de um garotinho negro de cinco anos.

Perguntei se ele também tinha sido vítima de violência policial.

— Quase… Violência colonial. Do tempo da Corte, da família Real…

***

Domingo. Acordei assustada, essa madrugada, por causa do lero-lero de Piti, ou de Sandra, sei lá eu, sobre a humanidade estar fadada a um eterno reset...

Tava sonhando que do topo de um país prédio em processo de desintegração, entre estilhaços de vidro e tijolos despencando, minha irmã discursava:

Antes, eram os pintores que faziam retratos.

Aí, inventaram a fotografia, pra acabar com a imprecisão da imagem.

Depois, criaram o Fotoshop e... voltamos à inexatidão da pintura! 

E assim caminhamos, e vamos continuar caminhando, em todos os setores e sentidos!

 Evoluímos da barbárie para a civilização, mas voltamos à barbárie, indefinidamente...

Lembrei de Sísifo, aquele herói grego condenado a empurrar eternamente uma pedra gigantesca até o alto de uma montanha, porque toda vez que alcançava o pico, a pedra rolava serra abaixo...

Me levantei e me entupi de anti-insurreissivo sonífero.

(antes temer dormindo do que acordada, né? Ou teria sido melhor ter ficado acordada pra nunca mais temer?)

(porque hoje é domingo...)