Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 10 (ou 10ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora:  se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

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Segunda-feira. Piti, minha vizinha de quarto, e Sandra, minha irmã gêmea, tornaram a furar o bloqueio do drone #ficaemcasaporra e deram de cara uma com a outra aqui hoje. Até que elas se gostam, mas como são muito parecidas, fico tensa, porque dois bicudos não se beijam, né?

Ainda mais que as duas têm em comum a mania de me contrariar e de achar que em vez de estar me curando, estou é me alienando endoidando, aqui.

Mas elas se comportaram. Até brincaram de jogo de adivinhação outra vez!

Tipo:

— Quem é quem é: que não gosta de pobre, se fantasia de pobre, finge tomar café de pobre, fala como um pobre ignorante, tem um monte de pobres seguidores?

Não consegui entender a maioia das perguntas, mas gostei do momento relex das duas...

Só fiquei cismada porque, em vez de questionarem e responderem, elas ficavam piscando uma pra a outra e me encarando...

Aiai...

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Terça-feira. Dessa vez foi Piti que quase me mata do coração. Saí do banheiro e lá estava ela, de quatro, engatinhando ao redor de minha cama.

Perguntei o que tava fazendo. Respondeu que tava procurando a nação perdida...

pirando piorando mesmo, tá não?

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Quarta-feira. Sandra ligou ontem à noite com um papo tão chato sobre música como instrumento político-ideológico, que adormeci no meio da conversa...

Mas acho que fiquei com esse negócio na cabeça, porque acordei cantarolando "Ideologia" e fazendo um monte de associação sem cabimento na cabeça.

Fiquei repetindo, principalmente, os versos que dizem "meus heróis morreram de overdose / meus inimigos estão no poder...".

Quando me dei conta do perigo do pensamento dissonante, peguei uns galhos de arruda de minha jardineira, me benzi, rezei e pedi em voz alta, pra fazer mais efeito:

Sai dessa mente, que ela não te pertence, Cazuza!

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Quinta-feira. Piti chegou aqui com um trololó estranho, sobre uma gente estranha, cujo cérebro desligava, reiniciava, hibernava, queimava...

Achei menos interessante do que a história dos smart peixes que comiam miolo de gente, e falei que essa era "criativa" demais (claro que pra amenizar a bobagem...).

Aí a malcriada disse que eu não entendia o que ela queria dizer porque minha mente também tinha dado tilt, e me mandou ler "Os meios de comunicação como extensões da mente do homem", de um tal de McLuhan...

Você entendeu alguma coisa?

Nem eu...

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Sexta-feira. Em geral, tenho sonhos esquisitos nas noites de sábado pra domingo.

São como prenúncios dos dias que sempre foram pra mim frios, melancólicos, vazios.

Hoje, a regra foi quebrada.

Sonhei que não mais sonharíamos, porque os arquitetos de utopias estavam partindo.

Catraca, catraca, catraca...

Um a um, eles iam passando pela borboleta de ferro que separa os dois lados da vida.

E íamos ficando cada vez mais tristes, nos sentindo cada vez mais órfãos.

Eles, não. Eles estavam livres.

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Sábado. Piti fez um buraco na parede que separa nossos aposentos. Disse que é pra a gente se comunicar sem chamar a atenção da patrulha #ficanoquartomala...

Eu achei uma boa ideia, melhor do que gastar energia, tendo que carregar o celular toda hora, né?

Mas aí as enfermeiras viram o buraco, tamparam, e ainda ficaram dizendo que eu que tinha feito!

Não aguento mais essa mania de dizerem que eu sou Piti, ou que Piti é Sandra, ou que Sandra sou eu...

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Domingo. Hoje, tenho certeza de que quem tentou inocular divergências em minha cabeça foi ela, minha vizinha de quarto. Eu tava aqui na boa, vendo os emoticons de bom dia de meus noventa e cinco grupos de WhatsApp, quando Piti ligou com um nhem-nhem-nhem existencialista pra lá de chato (tá pegando o jeito de Sandra...).

A humanidade tá condenada a voltar indefinidamente ao ponto de partida!

Cortei o falatório e pedi um exemplo prático.

A comunicação! É um vai e vem sem fim!

E levou horas falando sobre o fluxo e refluxo da linguagem, transitando da idade média à “idade mídia” e vice-versa. Não foi difícil seguir o raciocínio, mas não dá pra reproduzir o didatismo longo (e irritante) dela. Vou resumir aqui.

As pinturas rupestres eram a escrita dos homens das cavernas, confere?

(tem horas que nem respondo...).

— Depois, inventamos o alfabeto, passamos milênios aprimorando esse sistema de representação da fala, e o que aconteceu?

(...)

— Voltamos à comunicação pré-histórica, só que com imagens digitais...

Bastou pro cérebro relampejar fragmentos de um tempo em que tudo o que eu desejava era transformar as imagens que assaltam minha mente em palavras, traduzir sensações sem vocábulos correspondentes nos dicionários, decodificar as formas da solidão, da tristeza, do medo...

Mas aí lembrei daquelas carinhas fofas do WhatsApp resumindo emoções; das páginas inteiras de substantivos, adjetivos, verbos, etc. economizadas por figurinhas; das fotos do Instagram substituindo mil palavras, e voltei ao normal, quer dizer, ao celular.

Azar de quem gosta de sofrer, tentando pensar por si, né não?

(pisc).

(porque hoje é domingo...)