Helô Sampaio

Só não dormi na cadeia porque o delegado conhecia uma freira

Senta que vou contar essa e outras aventuras

Nunca pensei de ver este mundo velho sem porteira desse jeito: bares fechados ou quase vazios, pessoas recolhidas em casa (eu, inclusive) e pistas sem engarrafamentos, com poucos carros e pouco barulho. Nem acredito que estou na minha louca Salvador. Essa pandemia, ou melhor, esse pandemônio está perto de completar três meses, velho, tempo que estou em casa, sem passar da porta da frente. Tenho medo que a ‘quarentena’ que já está para virar ‘centena’ de dias, vire para ‘semestre’ de reclusão. Eu não vou aguentar.

A minha rua está deserta, sem vendedores, pedintes ou aborrecentes, mas também sem a zoeira alegre das crianças, sem o papo dos vizinhos, sem o ‘panavoeiro’ do animais correndo. Parece uma clausura. Estou me sentindo uma freira no convento, viu, Maria da Glória Pacheco? (Tô com saudade de você, minha irmãzinha do coração, que é freira de verdade). De tão recolhida, me sinto pura, casta e virgem (segura o teto) como uma anjinha.

Fico sentada na varanda da minha casa fazendo nada, ouvindo a zoada da água caindo na fonte, olhando as ‘artes’ dos passarinhos (que se sentem os donos do pedaço) nas plantas que estão lindas e viçosas com as fortes chuvas. Aí, a mente da criatura ‘aquartelada’ se liberta, deixa a professora plantada e voa para as lembranças da jornalista aventureira que, quase sem grana, conheceu boa parte do Brasil viajando de carona. Loucura? Hoje eu diria que sim, mesmo para jovens aventureiras. Mas nos anos 70, era sopa no mel.

Começo num congresso que fui em São Paulo e lá conheci o Márcio. Não havia acomodação para todo mundo e o Márcio gentilmente me cedeu a cama. Não, mente impura, ele não ‘dormiu’ comigo, não, (apesar de, na época, eu estar muito gostosa, viu, neguinho?). Ficamos amigos e ele externou o desejo de conhecer a Bahia e o Recife. “Quando estiver de férias passa lá em Salvador que eu serei sua cicerone, cara”. Ele se animou e logo marcou para vir passar o Carnaval em Salvador. Dito e feito.

Madrugada de Momo, estou na praça Castro Alves cheia de ‘bambá’, dançando até com os garis, quando ouço me chamarem. Mesmo sob efeito da ‘loura gelada’, reconheci o Márcio, que finalmente me encontrava. Ficamos até o dia raiar tomando ‘todas’ e eu ainda consegui dar o meu endereço. Pois você acredita, meu lindinho, que, ao meio-dia da quarta-feira de Cinzas o cara chegou lá em casa?

Zonza com a ressaca, levantei da cama resmungando, quando ele, com a cara bem limpa, lembrou da ‘nossa viagem que marcamos para o Recife hoje’, acredita? No auge da ressaca do Carnaval, véio. Mas palavra dada deve ser cumprida. Arrumei as roupas numa sacola, comprei sabonete e escova de dente nova (não esqueço disso, é incrível) e Ana, minha irmã, nos deu carona até depois do Detran, na saída para Feira de Santana.

Botei o dedinho na estrada e pegamos carona num caminhão até a entrada de Feira; outro até a saída. Aí começou o tormento, pois os caminhões não paravam no dedinho. Já estava desesperando, quando vi que um caminhão estava em conserto junto ao posto que estávamos. Jeitosa, procurei o motorista e puxei conversa fiada, perguntei se ele passava por Juazeiro. Aí, dei o golpe: ‘dá pra dar uma carona pra mim e meu colega?’. ‘Dá, uai’, respondeu o mineirinho, e aí, recomeçamos a viagem.

Eu tinha que ficar conversando o tempo todo pro mineirinho ficar esperto. Lá pras tantas, perguntei para onde ele levava a carga. “Prá Fortaleza, uai”. Fortaleza, velho, que eu queria conhecer. Virei pro Marcio e  lhe adiantei que a viagem para o Recife ia passar por Fortaleza. Dinheiro curto, tomando café com dois pães para juntar o almoço com a janta num só, ficamos uns dias em Fortaleza, na casa de Emília Cabral. Emília é uma amiga da Residência Universitária, que acolheu os dois trambolhos, tendo que fazer, inclusive um ‘bicama’ com redes para dormirmos. Amiga é assim, dá um jeito. Ela foi também a nossa cicerone.  

Depois, descemos de carona até o Recife, onde fiquei na casa de um namorado de Ana, que estava em Salvador mas ajeitou a nossa estada. Com casa e comida, ficamos uns oito dias batendo perna pelo Recife e depois, o dedinho voltou a balançar na estrada, para o retorno. Mais dormida em posto de gasolina, mais café com pão como refeição, mais dia sem tomar banho. Pensa que me arrependo? Nã-nã-ni-nã-não. Faria tudo de novo, se estivesse no tempo e na idade. Valeu!

Noutras férias, fui até Santa Catarina com outro colega, procuramos a cidade universitária para achar um canto pra dormir e estava em construção. Caramba. Será que podemos dormir na praia? Sentei junto a uma senhora no ônibus e perguntei. “Dormir na praia?! Com meia hora a polícia tira vocês”. Saltei numa delegacia, fui falar com o delegado. Mostrei carteira de estudante, minha e de Tadeu, meu colega, e expliquei que, não tendo onde dormir e não podendo dormir na praia, será que ele não poderia arranjar uma cela para passarmos a noite?

O delegado não caiu porque estava sentado. “Não acredito que estou vendo uma universitária baiana, bonita, pedindo par dormir na cadeia. Se eu contar isso, nenhum colega vai acreditar”. E depois de mais conversa sobre a Bahia e sobre minhas viagens, ele pegou o telefone, ligou para uma freira (voltamos às freiras) e conseguiu que eu fosse dormir no melhor colégio de Floripa. É mole, fio? Lençóis finos, um café da manhã que me poupou o almoço, as freiras super gentis com a jornalista iniciante. Maravilha pura.

Ah! e Tadeu? Dormiu numa cela pois o colégio era feminino.

Pra você saborear melhor nosso artigo, segue este Baião de Dois, receita da minha querida amiga Elíbia Portela. A vida fica melhor quando nosso corpo está satisfeito. Faça o Baião de Dois e siga a receita de Selma Macedo: mesmo sem poder bater perna pela cidade, leia seus livros que estão juntando poeira na estante, veja suas fotos para lembrar dos momentos felizes, ligue para os amigos para aquele papo descontraído, saber das fofocas, dos disse-me-disse, que é um trem bom demais, enquanto saboreia este delicioso baião de dois de Elíbia, dica para este período de quarentena. Beijão, lindona. Vai treinando para o dia dos Namorados, onde você come e dança o baião. Xero.

Baião de Dois de Elíbia

Baião de Dois

Ingredientes:

-- Cortar em cubos: 100g de bacon, uma linguiça calabresa, 250g de carne de sertão já cozida
-- Picar dois dentes de alho e uma cebola roxa pequena
-- 1,5 xícara de feijão de corda cozido em água e sal
-- 1,5 xícara (chá) de arroz cru
-- 1 colher (sobremesa) de colorau
-- 3 xícaras (chá) de água quente
-- 150g de queijo coalho em cubos
-- ½ xícara de cheiro verde picados (salsa, coentro e cebolinha).

Modo de preparar:

1 - Em uma panela aquecida frite o bacon em sua própria gordura
2 - Junte a linguiça e a carne de sertão, deixando fritar tudo junto
3 - Acrescente o alho e a cebola, salteando por alguns minutos
4 - Agregue o feijão e o arroz e junte o colorau
5 - AcrescentE água quente onde foi desmanchado uma colher (sobremesa) de sal
6 - Tampe a panela e deixe que cozinhe até secar o líquido e o arroz ficar macio
7 - Acrescente o cheiro verde e o queijo coalho em cubos

Se desejar, tempere com um pouco de pimenta do reino em pó.

Elibia ainda dá dicas, ensina a cozinhar arroz e servir acompanhando esta delícia. 

No vídeo
4 receitas especiais de arroz

Bom apetite!