Foto: Suzana Varjão
Nota da escritora: se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!
Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!
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Segunda-feira. Minha irmã gêmea não conseguiu fugir do drone #voltapracasa pra vir me ver, mas me ligou no final da manhã.
Tava uma arara!
Tudo porque chamaram uma garotinha negra de macaca.
— Não tem jeito. O racismo tá no DNA desse povo...
Tentei aplacar a indignação dela, argumentando que podia ser só um xingamento, não propriamente injúria racial...
— Tá mangando de mim!
Claro que não tava, né? Então, lembrei que tinha sido provado, cientificamente, que não existe raça. Logo, não pode existir racismo...
— Então, tá! Basta desmascarar uma mentira científica, inventada pra construir uma realidade perversa, pra que os efeitos dessa realidade sumam, como num passe de mágica?
— Mas...
— Não dá pra aplicar Descartes em tudo não, garota. Senão, valeria a máxima de que "você não pensa. Logo, você não existe!".
Aff! Que ignorância...
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Terça-feira. Sandra passou um zap visivelmente arrependida da estupidez que fez comigo ontem. Mas continuou com o mesmo ramerrame, querendo me convencer de que o mundo é uma usina de violências simbólicas.
— Querem esquematizar tudo, e, pra isso, sufocam as diferenças! O pior é que tem gente que diz amém, não questiona...
O motivo do surto da vez foi uma discussão com um sobrinho adolescente.
— Veio me dizer que eu não entendia a geração dele, que a geração dele era mais descolada que a minha, mais direta, mais objetiva, não criava confusão à toa!
Fiquei me perguntando se ela entendia... Mas não falei nada...
— Que mané geração! Tudo agora entra na conta dessa ou daquela geração! Mora com mamãe e papai, nem estuda nem trabalha? Grife na vagabundagem: “Geração Nem-Nem”!
Tive que aguentar um discurso sem fim sobre desníveis etários e desníveis culturais; a confusão que andavam fazendo entre uma coisa e outra, e blá, blá, blá.
Vi que não dava pra discutir e pedi pra ela dizer, objetivamente, o motivo do arranca-rabo com o adolescente.
— Ele queria peidar dentro do meu quarto, com o ar condicionado ligado e as janelas fechadas, pra saber se meu olfato tava bom, ou se eu tava de coronavírus!
Ah, tá!
(pensei que ela tava gastando erudição só pra protestar contra a arte do palhaço rapaz...).
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Quarta-feira. Minha irmã gêmea ligou contando causos sobre um tal pastor governo digital, que, segundo ela, estava pregando pra seu rebanho povo coisas fantásticas, tipo não ser mais necessário esperar oito meses pra colher mandioca, seis meses pra colher milho...
Achei legal ela estar animada, criando histórias, mas não entendi direito como a tal da autoridade faketícia conseguiria convencer as pessoas de que podia manipular o tempo de colheita, então, pedi pra ela detalhar mais a trama.
Aí, ela explicou que o sujeito se baseava na ideia de que em terreno real as mentes sementes demoram pra pensar brotar, e que por isso era necessário deletar o meio ambiente tradicional e importar terra virtual.
Senti certa ironia na voz de Sandra, mas como era um enredo sobre reinado digital, achei que fazia sentido, e disse isso a ela.
Pra quê?
Me mandou peidar n’ água pra ver bolinha subir.
É muita intolerância ideológica psicológica, né não?
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Quinta-feira. Sandra chegou aqui hoje causando. Escancarou a porta de meu quarto, ajeitou a máscara e berrou:
— Ele me enganou!
— Ele quem, Sandra?
— O tempo!
Olhei prum lado e pro outro, com medo que os psiquiatras ouvissem as bobagens e, em vez de visitante, ela virasse interna.
E acho que fiz bem, sabe?
Olha só o plágio que ela fez de um poema belíssimo de Fernando Pessoa: “O tempo é um fingidor / finge tão completamente / que chega a fingir que passa / quando quem passa é a gente”.
Fiquei sem saber se consolava ou se jogava pedra...
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Sexta-feira. Hoje Piti me surpreendeu. Entrou já tarde da noite no meu quarto, de álcool gel em punho, e começou com o mimimi sobre mecanismos de dominação e que tais. Na linha, "o projeto humanidade não deu certo", sabe como é que é?
— Antigamente, era a falta de acesso à informação que garantia a manipulação das pessoas.
Tava tão sem saco que só fiz assentir com a cabeça.
— Aí, veio a revolução dos meios, e as pessoas começaram a ter intoxicação cerebral por excesso de informação, rejeitando tudo o que tenha mais do que três verbos...
Achei elaboração demais pra falar de uma coisa simples: ignorância. Tentei não verbalizar, mas verbalizei... E esperei o pontapé.
Me elogiou!
Entendi nadica de nada...
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Sábado. Piti não devia vir aqui hoje, mas veio. E chegou esbravejando contra a “política fitness” do sanatório nacional.
Ficou falando e me olhando de relance, pra ver se eu dizia alguma coisa, mas eu não sabia que diabo de política era essa, então, fiquei só escutando...
— Eu venho suportando cidadania zero, vergonha zero, arte zero, caráter zero, bom senso zero, verdade zero, decência zero, empatia zero, ética zero... Mas foda zero é damaris demais!
Caí na asneira de perguntar se ela não tava com tolerância zero.
Fiquei roxa de tanto beliscão...
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Domingo. Tive um pesadelo com formigas.
Não dessas comuns, que encontramos em qualquer naco de terra, mas com as Myrmoxenus Ravouxi, popularmente conhecidas como Formigas Escravizadoras de Ravoux.
Já ouviram falar delas?
É um tipo endêmico da França, última morada do aclamado gênio da pintura Vincent van Gogh. Quer dizer, aclamado depois de morto, porque em vida vendeu um único quadro, mas isso é detalhe, não interessa nesse relato...
Voltando ao assunto, a rainha dessa espécie se finge de morta, para ser carregada para o formigueiro-alvo.
Assim que chega, mata a rainha dos soldados que a acolheram, se cobre com seus ferormônios e põe ovos, que as formigas locais, enganadas pelo cheiro roubado de sua rainha assassinada, cuidam como se fossem seus...
Quando os soldados da invasora crescem, matam os guerreiros locais e se apossam completamente do formigueiro-vítima.
Estratégia pra lá de traiçoeira de colonização!
Ainda bem que o comportamento humano é diferente do das formigas...
Né? (pisc)
(porque hoje é domingo...)