Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 08 (ou oitava semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora:  se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

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Segunda-feira. Minha irmã gêmea ligou pra me contar que hordas de desesperados estavam invadindo hotéis, centros de convenções, estádios, clubes, escolas, ginásios...

Meu coração disparou, senti um formigamento nas mãos e comecei a suar, ninguém aguenta tanto apocalipse, um dentro do outro, gente!

Mas aí Sandra esclareceu que, contrariando certa profeciazinha, não eram saqueadores brotando do caos eram anjos de máscara ocupando hospitais de campanha e salvando vidas.

Ufa!

Ainda morro do coração com as confusões desse verme vírus...

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Terça-feira. Minha vizinha entrou no meu quarto tão pra baixo, hoje! Nunca tinha visto assim, ensimesmada, falando manso.

Disse que tinha vindo me alertar pra eu tomar cuidado com as panelas...

Estranhei a postura, mas falei pra ela não se preocupar, porque eu não tava mais batendo panela.

Ela argumentou que não tava falando das panelas que haviam silenciado, mas das que estavam fumegando.

Continuei achando o discurso sem lógica, porque se tinha panela fumegando, era uma coisa boa, era sinal de que não tava faltando comida no sanatório, né?

Piti tentou explicar:

— Estou com medo das panelas que estão fumegando ódio.

Entender o que ela quis dizer eu não entendi, mas que me deu um calafrio, isso deu...

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Quarta-feira. Acho que Piti não tá bem mesmo. Até que chegou aqui mais animada do que ontem, mas me contou uma história sem pé nem cabeça!

Disse que o chefe do sanatório tava tão preocupado com a qualidade da comida que estava sendo servida aos internos, que trocou o coordenador dos faxineiros...

É ou não é sem noção?

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Quinta-feira. Sandra conseguiu burlar o drone #voltapracasa e veio me ver. Chegou aqui com um comportamento esdrúxulo, toda serelepe, cantarolando e dando cabriolas.

Bem, como o novo normal do sanatório inclui estado de ânimo tobogã, não valorizei...

Até ela dizer que tava com uma dzzzzzzzzt contagiante!

Tasquei spray de álcool 70 nela e empurrei pro chuveiro.

(nem me pergunte o que é dzzzzzzzzt. Só sei que ela disse que é contagiante!).

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Sexta-feira. Hoje, Piti entrou esbaforida aqui (já viu que quando ela chega assim, é sinal de barraco no sanatório, né?).

Nem bom dia deu e já foi anunciando:

— Fecharam o posto de saúde!

Fiquei em choque com a notícia, mas aí ela completou:

— E mandaram abrir academias de ginástica, barbearias, salões de beleza...

A ficha caiu! Entendi que tinha acabado a pandemia, e dei vivas!

Me chamou de eugenista disfarçada e saiu chutando tudo o que encontrou pela frente.

Eu, hein! Entendi nadica de nada...

Você entendeu?

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Sábado. Os médicos falaram que não estão satisfeitos com meu comportamento.

Disseram que eu ainda estou muito "dividida", e que tenho que enxotar minhas outras metades de vez daqui (estavam falando de Sandra e Piti, claro. Tô me acostumando com essa confusão deles...).

Eu bem que tento, mas acabo desistindo, porque é melhor ter a companhia de grilos falantes do que passar os dias só...

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Domingo. Acordei com a sensação de estar com uma bola de boliche ancorando meu peito. É que sonhei que os homens viravam cães!

E como homens cães, eram jogados em rinhas para matar ou morrer (morrer lutando ou na churrasqueira, entre gargalhadas e copos de cachaça, quando não conseguiam subjugar os inimigos impostos);

Como cães, eram largados às margens das estradas, para não atrapalharem as festas de fim de ano, os feriados prolongados ou as férias da família, padecendo de fome, frio, espanto e saudade daqueles que os haviam abandonado;

Cães que eram, os homens tinham seus filhos roubados e vendidos em pet man shops; alimentavam-se de restos jogados no lixo, eram enxotados, espancados, castrados, mutilados...

Uma luz no fim do sonho túnel desse novo mundo-homem: a fidelidade, a lealdade e a extrema capacidade, adquiridas dos cães, de amar e perdoar os maltratos, os abandonos, as indiferenças... 

(porque hoje é domingo...)