Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 07 (ou sétima semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora:  se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

***

Segunda-feira. Sandra, minha irmã gêmea, nem ligou hoje, porque tava todo mundo aqui ocupado, respondendo a um teste. É um tal de "Exame Nacional de Esquisitice Média", pra verificar o "domínio de competências e habilidades" dos internos e das internas.

Tô pra lá de chateada! Gastamos um tempo danado, queimamos os poucos miolos que temos, e vamos ter que refazer a prova, porque não alcançamos a nota mínima estipulada!

Enem!  Ah, nem!

O que será que esses examinadores estavam esperando? Pra mim, as respostas ao questionário estão supimpa! Mais dentro da lógica do nosso sistema de educação internação, impossível!

Vê só se não tenho razão:

P Maria comprou uma lâmina para analisar no microscópio. Depois de colocar a lâmina, não conseguiu ver nada. Quais podem ser os motivos disso?

R — Maria é cega.

P Qual a região onde predomina a caatinga?

R — Debaixo do braço

P Como podemos provar que o ar existe?

R — Respirando

P Agora, escreva ao lado de cada número seu nome:

a) 10 Bruno

b) 11 Bruno

c) 12 Bruno

d) 13 Bruno

P O que é aquecimento global?

R É o conjunto de programações da Globo. Exemplo: Tela Quente, Temperatura Máxima, Esquenta, etc.

P — O que são gases nobres?

R São os peidos dos reis.

Fazem sentido ou não?

(pisc, pisc).

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Terça-feira. Minha vizinha de quarto me deu um baita susto, logo cedo. Chegou aqui contando que a TV tinha noticiado que um bando de desvairados tinha assaltado o poder no País sanatório!

Imaginei bandoleiros por todo lado, armados com revólveres, pistolas, fuzis e o escambau. E falei que a gente devia se armar também, pra se defender.

Aí, ela disse que o melhor era a gente comprar liquidificadores, porque segundo não sei que civil, que chefiava não sei que casa, liquidificadores eram tão letais quanto armas de fogo.

Ufa! Respirei aliviada!

Quaaaaaaaaase caí na história de desvairados no poder.

Essa Piti...

Não sei de onde tira tanta inspiração invenção, gente!

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Quarta-feira. Teve surto de diarreia na ala nobre do hospício. Tá todo mundo achando que foi a comida (é diferente da nossa, ainda bem...), mas minha vizinha de quarto chegou com outra teoria.

— Devem ter tomado Impunemax 171mg.

— Oi?

— Aquele laxante que solta tudo: de juiz corrupto a fornecedores de merenda escolar e de quentinha de presídio. E não tem lava-jato lavagem que dê jeito!

(tem horas que não aguento as besteiras de Piti...).

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Quinta-feira. Esse sanatório tá parecendo um quartel.

É tudo na base do #esquerda, #direta, #esquerda, #direita; #ficaemcasa, #saidecasa; #ficaemcasa, #saidecasa; #tiraopedacova, #botaopenacova, #tiraopedacova, #botaopenacova...

E como hoje a ordem do dia era #tiraopedacova, as visitas foram suspensas, e Sandra teve que correr picula com o drone #voltapracasa pra vir me ver.

Achei tão fofo, o esforço dela!

Mas a gente nem teve tempo de conversar, porque Piti irrompeu no quarto com mais uma de suas brincadeiras bobas de pergunta e resposta.

— Se você ficar doente aqui, quem você deve procurar?

Ela perguntou, ela mesma respondeu.

— Um economista!

E saiu gargalhando.

Coisa mais sem graça...

Né?      

***

Sexta-feira. Tava aqui no maior relax, assistindo a um espetáculo de circo na TV, quando ouvi a maior gritaria no pátio.

Pensei até que era Piti fazendo confusão, porque tive a sensação de ter ouvido o nome dela, mas o bafafá era com uma secretária do planalto escritório central do sanatório.

É que o cemitério daqui tá lotado, e acho que a tal secretária surtou!

Acusou os jornalistas coveiros de estarem desenterrando corpos, pra criar vagas pros vivos!

Pense num show de horrores!

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Sábado. Dia de revisão médica bem atípico. Em geral, Sandra e Piti somem e passo o dia só. Mas as duas tanto fizeram que não tomei a dose dobrada de remédios da sexta. Resultado: não largaram do meu pé.

Mais estranho ainda: não sei como, mas não me desentendi com nenhuma das duas. Ao contrário. Tive até que reconhecer que era muito parecida com elas, e que só contestava suas ideias pra não ter que admitir isso...

Ficamos as três tão de boa, o dia todo, que teve uma hora que pensei que tava conversando comigo mesma!

Muito doido, né não?

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Domingo. Pelas grades da janela da enfermaria, é possível observar a chegada dos trens com pacientes.

O hospital tem capacidade para 200 leitos, mas apesar das mortes frequentes, há muito mais gente que vagas.

Não, os pacientes não portam coronavírus. As enfermidades são outras: pensamento divergente, comportamento destoante, presença incômoda...

No pavilhão feminino estão confinadas opositoras do regime político vigente, homossexuais, meninas grávidas de seus patrões, prostitutas, esposas internadas para liberar a casa para a amante do marido, mendigas, filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento... 

Assim que são despejadas no sanatório, têm as roupas arrancadas; os cabelos, raspados; a identidade, apagada.

Pouquíssimas têm diagnóstico de distúrbios mentais. Chegam para serem reprogramadas e se reajustarem ao status quo dominante — ou não...

Para os múltiplos “distúrbios”, o tratamento padrão: espancamentos, estupros, choques elétricos (tão fortes que, por vezes, derrubam a rede elétrica do lugar...).

Entre uma etapa e outra do processo de fabricação da loucura, muitos corpos, vendidos para 17 faculdades de medicina do território nacional sanatorial.

Vez por outra, o mercado encolhe e sobram cadáveres, que são decompostos em ácido, no pátio do asilo, diante de pacientes vivos, para que as ossadas sejam comercializadas…

Quando estavam me arrastando para a sessão de choques, gritei tanto que acordei, suando de pavor! Aí, chamei Piti, pra contar o pesadelo que tinha tido!

Olha só o que a criatura inventou: que não tinha sido sonho, que eu tinha revivido fragmentos de uma conversa antiga com uma jornalista sobre a realidade de um hospital colônia...

Fiquei tão indignada com a maldade, que expulsei ela do quarto, mas a pirracenta me passou um bilhete por debaixo da porta, com esse endereço aí:

ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro – vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editorial.

E gritou que era pra eu mesma ir lá conferir...

(porque hoje é domingo...)