Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 06 (ou sexta semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora:  se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

***

Segunda-feira. Sandra chegou com mais uma de suas novidades. Contou que "Alice no país das armadilhas" tinha arrebatado um prêmio importante de cinema.

Bem, como de praxe, começamos uma discussão, porque ela não admitia que o nome do filme tava errado, mas acabei deixando pra lá...

A distinção tinha sido no "Festival da Paródia". Já ouviu falar? Nem eu...

Mas fiquei na minha, não ia dar uma de desinformada, né?

Ai, ela explicou que o roteiro era de terror, porque a protagonista acordava um belo dia e via que o mundo tinha virado de ponta-cabeça: alguém tinha descoberto que a terra não era redonda, que uma mentira bem contada valia mais que mil verdades, que mocinha boa era mocinha morta, que pandemias eram invenção da mídia, e que os peixes eram seres mais espertos do que gente, pois não se deixavam enganar por comida tóxica...

Me perguntou o que eu achava, eu disse na tampa que o script também tava errado, porque a história de Lewis Carroll não é de terror, é surrealista!

Me arrependi.

Sandra saiu chutando o pé da cama e gritando pra eu parar de tomar remédios, porque eu tava ficando retardada!

Baita ignorância, a dela. Os peixes-protagonistas devem ser mesmo mais inteligentes, porque andaram fisgando determinados cérebros...

É ou não é?

***

Terça-feira. Acordei com a discussão de ontem na cabeça (talvez nem tenha dormido, na verdade...). É que não gosto quando me desentendo com minha irmã gêmea, porque ela se chateia e some dias a fio.

Como se não bastasse, Piti entrou no meu quarto de máscara e álcool gel em punho, falando sobre a mesma história (com certeza andou conversando com Sandra...).

Eu nem tinha me levantado da cama ainda e ela querendo ligar a TV, pra ver as últimas notícias sobre o tal filme.

Lembro que na história de Lewis Carroll, as coisas não acabam bem, porque a "Rainha de Copas" impõe o julgamento de Alice, que não tinha, aliás, cometido crime algum. E o julgamento, hahahahaha! Totalmente fajuto, porque a sentença é dada antes: "Cortem-lhe a cabeça", ele decreta!

Mas Piti disse que no filme a ordem não era dada por uma rainha, e sim por um rei, o "Rei das Armas" (ela quis dizer "Rei de Copas", claro, mas preferi não começar outra discussão...).

E mais: quem cumpria a pena de matar a mocinha era o filho do rei!

Baita desvio da trama original! Não tive como não apontar esse outro erro.

Pra quê?

Foi embora pau da vida, dizendo que nem ironia eu entendia mais, e me aconselhando a fazer como ela: esconder os remédios debaixo da língua e jogar na latrina, depois.

Dá pra entender essas duas?

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Quarta-feira. Vi um filme pra lá de sombrio, ontem à noite, sobre uma sociedade marcada pela falência das instituições, da democracia, do ideal civilizatório.

Era um mundo caracterizado pela renúncia às utopias, no qual os livros mofavam em bibliotecas, e as pessoas haviam se transformado em meros operadores de teclas e botões.

Às catástrofes humanitárias (violências, desigualdades, desabrigos, fome, nomadismos forçados...), somava-se a destruição progressiva do meio ambiente.

Nessa ambiência degradada, um poderoso magnata da tecnologia da informação armava um plano para salvar o planeta dos homens, reservando-o para poucos escolhidos.

Como estratégia, doava à população celulares com acesso gratuito à internet. Só que esses aparelhos portavam uma espécie de vírus digital que, a um comando sonoro, ativavam o instinto violento das pessoas, que se digladiavam até a morte.

O extermínio da raça humana só não se concretizava porque os chips antivírus implantados na nuca dos escolhidos explodiam, e eles, literalmente, perdiam a cabeça, e, posteriormente, o cabeça da operação.

Achei o roteiro arrepiante, e fui comentar com minha vizinha de quarto, mas só fiz me chatear, porque a criatura não leva nada a sério, gente!

Disse que o roteirista tinha plagiado nossa realidade, porque as únicas diferenças entre o filme e a situação no sanatório nacional eram que o vírus não era eletrônico, e nem todas as cabeças tinham rolado do pescoço...

 (ou será que o que ela disse foi que o cabeça era carne de pescoço? Agora fiquei na dúvida...)

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Quinta-feira. Não tem muito o que fazer confinado, né? Então, o negócio é ver e rever filmes e séries na TV.

Ontem, foi a vez de "O rei leão". Eu tava de boa, assistindo o desenho e comendo pipoca, mas a figura de Scar começou a empalidecer.

Daí a pouco, não era mais o irmão mau caráter do imperador da selva que estava tramando a tomada do trono.

Era um homem com um celular numa mão e uma arminha na outra, rodeado por hienas, usurpando o poder no país.

Aff...

Ou eu adormeci e não percebi, ou as visitas de Sandra e de Piti estão me fazendo mal...

Mas é só tomar uma dose de anti-insurreissivos sedativos e...

Hakuna matata!

***

Sexta-feira. Tava de boa aqui, higienizando meu celular, meu iPad, meu note... Aí, escutei uma zoada dos infernos lá fora.

Fui pra a varanda ver do que se tratava, e adivinhe? Era Piti, batendo panela e gritando que tava tendo pandemia no sanatório.

Não entendi nada, porque o mundo todo já tava sabendo disso, mas aí ela explicou que não era pandemia de vírus não...

— É pandemia de imbecilidade!

Como nunca sei quando minha vizinha tá brincando ou falando sério, e eu sou do grupo de risco, por segurança, fechei as janelas e tasquei mais álcool 70 no quarto!

Seguro morreu de velho...

(ou será que o ditado é “o velho morreu de seguro”? Tornei a ficar em dúvida...).

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Sábado. Hoje, nem os médicos vieram me ver.

Todo mundo se recolheu cedo, por causa de um arranca-rabo entre os internos e a cúpula do sanatório.

Tudo porque o poderoso chefinho se queixou de que tava ficando atordoado com tanto barulho que andavam fazendo nas janelas, e tentou confiscar as ‘panelas de bater’ do manicômio!

Ninguém entendeu nada, porque tava todo mundo certo de que ele era surdo...

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Domingo. Proibiram de vez a entrada no refeitório. Agora, a gente é que tem que cozinhar, sabendo ou não.

Mas isso pra mim é o de menos, porque sei fazer chá de café, sanduíche de salame com leite condensado, miojo com açaí...

O pior é receber as compras na porta de casa, cheias de umas criaturinhas que a gente não vê, mas que tem que golpear, como se fosse um jogo de cabra-cega.

Eu achava que tava tomando todas as precauções, mas minha vizinha de quarto disse que meu método no front de batalha tava fraco, e relatou minuciosamente o dela:

Passo 1. Fecha as cortinas das janelas, porque no final da luta ela fica nua, “e o que mais tem nesse confinamento é desocupado abelhudo” (palavras dela, deixemos claro...)

Passo 2. Coloca as duas máscaras (a de pano e a de acrílico), a touca, as luvas, e um pano de chão umedecido com solução de hipoclorito de sódio na porta (achei chiquérrimo, o nome que ela deu pra água sanitária...).

Passo 3. Quando os pacotes chegam, ela grita pra deixarem no chão, e só abre a porta depois que a maioria das partículas de mamonas... ooops... coronas assassinas em suspensão caem por terra.

Passo 4. Ainda do lado de fora, borrifa solução de hipoclorito no ar, e álcool 70 nas compras; espera 15 minutos, tira as embalagens e joga num saco plástico, que amarra, borrifa com álcool 70 e coloca na lixeira.

Passo 5. Acomoda as compras numa bacia e passa pra a zona de descontaminação de um metro quadrado que fez na entrada do quarto, fecha a porta, passa álcool gel nas mãos e leva os produtos pra a pia, arrastando o pano de chão com o pé, pra já ir matando as partículas que caem pelo caminho.

Passo 6. Higieniza alguns produtos com água e sabão, passa álcool 70 em outros, lava as frutas e verduras e coloca de molho na solução de hipoclorito.

Passo 7. Hora de se descontaminar: levanta o escudo de acrílico, tira a máscara de pano (pelas alças!), a touca, as luvas, e coloca tudo na bacia com água e hipoclorito, que deixa na área de higienização.

Passo 8. Tira toda a roupa, põe na máquina e segue pro banheiro, peladinha da silva, onde lava a máscara de acrílico, o cabelo, o corpo e... tá pronta pra outra!

Eu achei um exagero tão grande, que acabei sonhando com essa canseira dela, acredita?

Quer dizer, sonhando, não. O que eu tive foi um pesadelo, porque depois de executar todo o passa-a-passo, uma partícula renitente, alojada numa maçã, não se desintegrava! E era exatamente a maçã que eu colocava na boca!

Mas justo na hora que eu ia engolir o pedaço com o vírus, Piti entrou no quarto intempestivamente, como sempre, e me acordou.

Ufa! Fiquei tão aliviada...

Ou será que deveria ficar preocupada?

(não é que fiquei em dúvida de novo?).

 (porque hoje é domingo...)