Foto: Suzana Varjão
Nota da escritora: se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!
Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!
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Segunda-feira. Nem tinha escovado os dentes ainda quando minha irmã gêmea me ligou, e começou com os protestos políticos dela, berrando palavras de ordem, como se estivesse recitando, declamando, representando... sei lá eu!
— “...vozes gritavam, cheias de ódio, e eram todas iguais. Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem, quem era porco”.
Quando ela deu uma pausa, ponderei que não era civilizado se referir aos pacientes do sanatório desse modo, mas ela disse que não se tratava da vida real, que tinha apenas lido um trecho do livro “A revolução dos bichos”, de um tal de George Orwell...
Gente, que associação doida foi essa que eu fiz?
Assim que Sandra desligou, tripliquei a dose de anti-insurreissivos calmantes e fui dormir.
Melhor não arriscar uma recaída...
Né?
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Terça-feira. Acho que os remédios fizeram efeito, porque acordei bem mais tranquila no que se refere à associação sem propósito que fiz ontem.
Aí, pra afastar de vez a mente do perigo, procurei me distrair e liguei a TV.
Tava passando as cenas de um protesto, com uns seres raivosos clamando por ditadura, perseguições políticas, sequestros, censura, torturas, execuções...
Bastou, pra eu confundir ficção com realidade de novo, achando que o remake de “A revolução dos bichos” fosse um motim no sanatório nacional!
Não entendo por que tornei a pirar piorar...
Alguém entende?
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Quarta-feira. Esqueci de contar! Aconteceu uma parada tão esquisita no sanatório!
É que desde que assumiu a administração do hospício, o chefe arrumou muita, mas muita confusão, e se desentendeu com quase todo mundo do planalto escritório central.
Chegou num ponto que ele viu que não podia continuar dando ordens pra ele mesmo, e chamou o exército manicomial pra dividir o poder com ele.
Mas... a guarda recusou!
Alguma coisa está fora da ordem sanatorial...
Tá não?
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Quinta-feira. Piti escapou do drone #voltaproquarto e veio me contar pessoalmente outro bafafá que tinha rolado no asilo.
Ela informou que o diretor das relações intersanatoriais tinha emitido um comunicado que confirmava a suspeita de Sandra sobre o caráter socialista do coronavírus (eu escrevi sobre isso na 2ª semana, lembram?)
Na mensagem, a autoridade alertava sobre o perigo de variação do vírus, que poderia se transformar em comunavírus.
Disse que o vírus ideológico provocava a doença Comuna-20, e que a nova pandemia estava sendo orquestrada por uma tal de Organização Multimanicomial da Solidariedade (OMS).
Fiquei desconfiada de que Piti estava sob efeito da mais nova droga ministrada no sanatório nacional, a delirium conspiratio, mas preferi não me arriscar.
Enxotei ela, antes que o drone flagrasse a gente conversando, e achasse que meu quarto era uma célula preparatória do comunismo...
Exagerei?
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Sexta-feira. Acordei com Piti berrando no meu ouvido que o diretor de segurança do sanatório tinha pedido demissão.
Depois que me recuperei do susto, perguntei o motivo, e minha vizinha de quarto informou que ele tinha alegado traição por parte do chefe do sanatório!
Achei uma injustiça com ele, mas não consegui argumentar direito, porque Piti me interrompeu, ordenando que eu respondesse ao seguinte questionário:
— Você está indo para uma festa, de carro, e, no caminho, descobre que na verdade o que vai acontecer é um assalto. Qual a alternativa mais correta:
a. Você salta do carro e faz de conta que não sabe de nada.
b. Você salta do carro e denuncia o assalto.
c. Você não salta do carro, participa do assalto, mas quando estão para descobrir o crime, pula fora.
d. Nenhuma das respostas anteriores, porque você sabia que não estava indo para uma festa.
Não entendi a relação de um assunto com outro... você entendeu?
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Sábado. Vocês já perceberam que é Sandra que me atualiza sobre o que acontece fora daqui, né? Mas hoje me veio com uma notícia que eu não entendi. Não sei se foi boa ou ruim, se devia me alegrar ou me chatear, rir ou chorar...
Ela disse que tinha dois sanatórios destoando do cenário global da pandemia. Nesses asilos atípicos, havia máscaras caindo de determinadas faces, e em vez de feições condizentes com uma tragédia, surgiam traços próprios de atores bufões.
O pior é que esqueci de perguntar onde eram esses manicômios...
Alguém aí sabe?
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Domingo. Acordei tão confusa! Sei que ficção é ficção e realidade é realidade, mas essas séries de TV acabam me tirando de órbita.
Tava assistindo Criminal Minds ontem e acho que adormeci, porque comecei a misturar deturpar a história da série.
O enredo era sobre um psicopata que exibia homicídios em tempo real, na internet, confiando no baixo grau de humanismo das pessoas, que mesmo sabendo que as mortes só ocorreriam se houvesse audiência, se conectavam com o portal do assassino.
Aí, em lugar do psicopata nerd da série, aparecia um sociopata que usava as redes sociais pra pregar a morte de divergentes, defender tortura, elogiar milicianos, espalhar levianamente um vírus assassino, boicotar o sistema de saúde pública...
Não sei de onde tirei essa maluquice.
Com certeza foi Sandra que me confundiu, com as histórias fantasiosas dela!
Não acham?
(porque hoje é domingo...)