Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 04 (ou quarta semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora:  se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

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Segunda-feira. Finalmente, autorizaram as visitas de Sandra, mas disseram que ela só poderia entrar aqui com Equipamento de Proteção Individual, um tal de EPI.

Aí, ela veio de máscara N95, com óculos de proteção, escudo de rosto e gorro impermeável por cima; macacão contra perigo biológico, com avental impermeável, luvas e botas de borracha por cima; álcool gel numa mão, álcool 70 noutra; sacola com equipamentos extra pendurada num ombro; saco pra descarte de material contaminado no outro.

Achei um exagero de minha irmã gêmea, mas ela argumentou que todo cuidado era pouco, porque eu tinha baixa imunidade psicológica e havia uma liderança tóxica circulando pelo sanatório nacional...

Quase não durmo, gente!

É castigo demais pra um manicômio só, né não?

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Terça-feira. Alvoroço no hospício. Tudo por causa de uma mitira mentira que teria sido espalhada nas redes sociais.

Até Sandra, que não é de acreditar em boato, ficou preocupada, e me mandou guardar o resto do almoço embaixo da cama, por precaução...

Perguntei o porquê do fuzuê.

Sandra explicou que era por causa de um disse-não-disse que ia faltar panela no sanatório pra fazer o jantar!

Por que será, gente?

Estranho...

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Quarta-feira. Piti avisou pelo zap que ia sair do quarto pra fazer uma fezinha.

Disse pra ela que era perda de tempo, porque só as atividades indispensáveis estavam funcionando no manicômio.

Aí, ela informou que as lotéricas tinham sido incluídas no rol dos serviços essenciais!

Demorei, mas acabei percebendo a lógica, porque se era determinação do planalto escritório central do sanatório, alguma relevância tinha.

Deve ser melhor morrer rico do que pobre...    

Acertei?

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Quinta-feira. Esgueiro-me pelos corredores sem luz, já sem perspectiva de achar uma saída.

Os tapetes abafam os passos, mas sigo descalça, na esperança de me distanciar de meus algozes.

Entro em um dos vãos do labirinto de luxo, encolho-me num armário, aguardo — o coração aos saltos, a mente carcomida de pavor.

Onde um dia foi espaço de garantia de liberdades, sou prisioneira do medo: o locus de construção de sonhos foi convertido em zona de distopias...

O trinco gira, minha respiração cessa, tenho as roupas rasgadas; o corpo, lançado ao chão.

Com o rosto colado ao meu — o hálito podre me sufocando, a baba pingando em minha face —, um deles sentencia, entredentes:

— Eu só não lhe estupro porque você não merece...

(mais uma vez, não sei onde estou: se em território de delírios, pesadelos ou memórias; tampouco quem sou — se apenas uma, duas, três ou 105 milhões de almas violentadas).

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Sexta-feira. Eu até que tô evitando entrar na onda do pandemônio que estamos vivendo, mas meus grilos falantes essas duas criaturas não ajudam!

Em nossa videoconferência de hoje, eu tava de boa, tentando mostrar pra elas os aspectos favoráveis da crise sanitária, porque tudo tem um lado positivo, né?

Dei vários exemplos, pra fundamentar meu ponto de vista: tem menos carros circulando, menos acidentes nas estradas, menos congestionamentos, menos gás carbônico no ar...

E a estraga prazeres da Piti:

Mais casas vagas...

Né moleza não, viu?

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Sábado. Acordei cedão, escovei os dentes, engoli o café, me penteei, vesti a roupa do dia de visitas, me perfumei e fiquei esperando o Skype de Sandra.

Quando ela apareceu na tela do note, eu quase dei um pulo de alegria tava ansiosa pra saber como andava a situação nos sanatórios internacionais.

Mas ela ficou lá, parada, só me olhando...

Eu achei que fosse problema de sinal e esperei, mas as horas foram passando, passando... e nada!

Aí, eu pensei que era melhor refazer a conexão, mas acho que pensei alto, porque quando eu fiz menção de desligar o computador, ela suspendeu um cartaz com a seguinte inscrição, em letras garrafais:

“Língua de quarentena”

Tasquei uma chinelada no monitor.

Fiz mal?

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Domingo. Sonhei que a biopolítica tinha sido reforçada no sanatório nacional.

Não aquela que orienta o exercício do poder de espada, de “fazer morrer ou deixar viver”, ou seja, de matar ou perdoar, de acordo com a vontade do monarca — ou agente disciplinar — de plantão.

Essa biopolítica já estava sendo exercida a contento, na contemporaneidade, contra negros e pobres nas periferias do poder.

O reforço tinha sido para o biopoder de “fazer viver ou deixar morrer”, com a contratação de um novo gestor para o posto de saúde do manicômio.

Esse novo administrador tinha a missão de potencializar o processo darwiniano do coronavírus, “fazendo viver” os pacientes mais novos e “deixando morrer” os mais velhos, negando-lhes o direito de respirar...

Mas como há, sempre, pensamentos dissonantes dúvidas técnicas, alguém perguntou, nos meios de comunicação do governo escritório virtual, se o critério valeria nos casos em que o idoso fosse um banqueiro e o jovem fosse um morador de favela.

Pena que justo quando Michel Foucault o crítico da biopolítica ia responder, Sandra ligou, e eu acordei...

O que será que ele ia dizer?       

(porque hoje é domingo...)