Foto: Suzana Varjão
Nota da escritora: se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!
Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!
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Segunda-feira. Sandra fez uma videoconferência hoje, mas em vez de aproveitar pra atualizar a gente sobre o que tava acontecendo fora daqui do sanatório, inventou de brincar de adivinhação.
A primeira pergunta foi sobre se sabíamos o que era um pandemônio.
Piti, claro, entrou no jogo e respondeu:
— É uma pandemia administrada por um demônio!
Não achei a menor graça...
Cê achou?
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Terça-feira. Dei um salto da cama, hoje. Quase me esborracho no chão. Tava sonhando que uma multidão invadia os gramados da capital do país e expulsava um monte de trapaceiros aos gritos de...
—É goooooolpe!
Só que não...
Tinha cochilado em frente à TV, e a gritaria dos internos me acordou.
— É goooooool!
Confusão doida... Acho que vou ter que dobrar a dose de anti-insurreissivos calmantes...
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Quarta-feira. Na live de hoje, Sandra contou que os ricos andavam assustadíssimos com o tal vírus intersanatorial.
Eu tava ansiosa por notícias sobre a situação em outros hospícios, mas achei essa meio óbvia, porque tá todo mundo com medo, né?
Aí, ela acrescentou que o pânico não era pelo risco de morrer, era porque o vírus era socialista!
— Tá distribuindo renda, dando abrigo aos sem-tudo, priorizando a saúde...
Até achei a brincadeira positiva, mas aí Piti interveio, com o pessimismo de sempre.
— É porque o vírus sabe que nem todo pobre morre, ou apresenta sintoma, mas é transmissor, então, melhor manter abrigado e sadio...
Tá difícil aqui, viu?
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Quinta-feira. A garganta arde de tão seca, o estômago dói, e a pele, lacerada por espinhos, queima sob o sol inclemente.
Sandra vai à frente: tacho na cabeça, passos cambaleantes, braços e pernas cobertos de poeira.
Seguimos descalças — a cadela Fuinha no encalço, às vezes passando à frente, tão logo acaba de coçar o couro carcomido por pulgas e carrapatos.
À beira do açude que mata a sede do gado das terras vizinhas, Sandra tomba e some sob suas águas turvas.
Eu paraliso.
(não sei onde estou — se em território de delírios ou memórias; não sei o que sinto — se fome imaginada ou lembrada; tampouco quem sou — se quem sufoca n' água sou eu, Sandra...).
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Sexta-feira. Piti tornou a acordar virada no mói de coentro! Tudo por causa de um pesadelo. Sonhou que um representante do povo tava sendo julgado por corrupção, e que havia prova cabal do crime: por WhatsApp, o mercador de consciências havia perguntado se deveria cancelar o envio da propina combinada, e o político respondera:
— Não, quero receber!
Condenação certa, pensou, até que o advogado-porta-de-erário entrou em cena, arguindo que seu cliente era honestíssimo, e, ao contrário do que o texto fazia supor, se recusara a receber suborno (tsc tsc tsc).
A confusão teria sido causada pelo corretor de texto do celular, que teria inserido, arbitrariamente, uma vírgula que acabara invertendo o sentido da frase, pregando, assim, uma peça no acusado, que, na verdade, teria pensado e escrito "Não quero receber!".
Tá vendo aí pra que servem professores, escritores, acadêmicos e genéricos do tipo? Pra cozinhar "sopa de letrinha" e ajudar gente desonesta a construir esse tipo de argumento!
Tô errada?
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Sábado. Outro sábado só. Nem Sandra nem Piti apareceram, ou ligaram. Os médicos e as enfermeiras acham bom, acham que quando isso acontece, reúno os pedaços de mim. Mas eu não gosto. Sinto-me angustiada e confusa. Ora penso que sou Sandra, ora que Sandra é Piti, ora que Piti sou eu...
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Domingo. Hoje de manhã quase tenho outra recaída daquelas! Não sei como, mas as duas vozes dissonantes que vocês conhecem conseguiram invadir meu quarto, e por pouco não entro na onda delas...
Tava vendo o noticiário sobre uma mãe e seus nove filhos pequenos, que caçam e comem ratos, num lugarejo desses aí (snif...). A fome bateu à porta da família com mais força depois que o pai dos meninos se matou, por não conseguir pagar uma dívida de R$ 150,00, contraída com a compra de cestas básicas.
Bastou pra Sandra começar com essas histórias de humanismo, igualitarismo e outros ismos perigosos, que acabaram me trazendo pra cá (e se ela não parar com essas bobagens, vai acabar trocando de lugar comigo, vivo prevenindo...).
Pra me convencer de que a tragédia da família estava vinculada a desmandos políticos, me contou que tinha um punhado de parlamentares devendo R$ 533 milhões aos cofres públicos, e que esse mesmo grupo ia decidir, por voto, se nós iríamos perdoar a dívida deles.
Quis contemporizar, argumentando que não achava de todo ruim, o perdão para a tal dívida, que achava melhor do que presenciar a morte de tantos pais de família, como tinha acontecido com aquele pobre diabo, etc. etc.
Piti, em vez de me ajudar, sacou uma de suas ironias típicas (e mais arriscadas do que a fixação de Sandra pelos ismos).
— Se tivesse mais famílias comedoras de ratos, o problema tava resolvido. Bastava mandar todas pra a porta do...
Não deixei ela terminar. Enxotei do quarto.
Sandra também.
Junto com minha lucidez.
(porque hoje é domingo...)