Foto: Suzana Varjão
(Palavras do filósofo Bernardo Toro, para quem a tendência é de que a fome, a miséria, as epidemias e as violências alastrem-se de modo incontrolável, desfazendo, de modo irreversível, os laços que nos tornam humanos)
Breve preâmbulo: a história desse domingo não é ficcional. É uma entrevista com um filósofo. E não, não é de agora. Foi realizada há pouco mais de 10 anos. Mas é incrivelmente atual. Conversei com Bernardo Toro em 2009, em Salvador (BA), por ocasião do lançamento de um movimento em prol de cidades justas e sustentáveis.
Escrevi, mas acabei não publicando, porque fui atropela por outras prioridades (viagens pelo Brasil, com a Caravana do Desarmamento, e para participar de eventos de lançamento de meu primeiro livro, mudança para Brasília...). Faço-o agora, sem ter trocado uma vírgula, sequer. Confira como contexto e palavras ajustam-se à realidade contemporânea:
A espécie humana está prestes a desaparecer do planeta. Água, alimento, energia e espaço são quatro fatores determinantes do desastre que se avizinha. Mas é possível adiar o cataclismo, mudando, a partir da estrutura mental, o modelo de construção do mundo. A reflexão é contemporânea, e não parte de profetas-padrão, mas do filósofo, sociólogo, físico, matemático e educador colombiano Bernardo Toro.
O quadro pintado pelo intelectual não difere muito dos presságios dos arautos próximos do campo religioso: as condições climáticas e a escassez de recursos naturais provocarão grandes deslocamentos humanos; a fome, a miséria, as epidemias e as violências irão alastrar-se de modo incontrolável; os laços que nos tornam humanos irão desfazer-se de modo irreversível. E em curto espaço de tempo.
Há sinais por toda parte nos grandes aglomerados urbanos: cidades submersas, hordas de desabrigados, índices alarmantes de homicídios, dengue, AIDS, meningite, febre amarela, gripe H1N1... Mas há também os céticos. Os que acreditam, por exemplo, que este tipo de previsão está associado a grupos políticos e econômicos em busca de reserva de espaço e de mercado – como o da Amazônia. Toro alerta:
– O que estamos dizendo ainda é conservador diante do que irá acontecer.
Para ilustrar a tese, recorre ao dado, amplamente difundido pelo campo científico, de que a temperatura da terra irá subir meio grau, daqui a 10 ou 15 anos.
– Na verdade, sabemos que a temperatura irá subir dois graus.
Isso, numa perspectiva otimista, porque, segundo o físico colombiano, ainda que a emissão do gás carbônico, um dos vilões do superaquecimento global, fosse imediatamente eliminada; que os desmatamentos cessassem completamente; enfim, que todos os esforços para barrar este processo lograssem êxito; ainda assim, “evitaríamos apenas que a elevação de temperatura passasse dos dois graus”. Evitar a destruição da Terra, então, seria utopia?
– Não. A desesperança foi construída. E é possível desconstruí-la.
O “como” não é fácil, não dispõe de fórmulas simples, mas tem norte, princípios e ponto de partida para a ação: mudar a forma de ver o mundo, e, portanto, de construí-lo.
– O mundo está dessa forma porque foi pensado dessa forma. A realidade está em nossa mente. Em nosso pensamento. E para mudar o mundo é necessário mudar o modo de compreender o mundo, de categorizá-lo.
A abstração do filósofo encontra respaldo em estudiosos como Clifford Geertz, Cornelius Castoriadis e Pierre Bourdieu, que, dentre outros cientistas, evidenciam a relação mutuamente constituinte entre as estruturas mentais e as estruturas materiais. Em outros termos, demonstram como a psique cria o corpo físico, e vice-versa. E o papel mediador do campo simbólico, onde se inclui a palavra – que, aliás, não é passiva:
– Palavras criam mundos.
O alerta vem sendo dado por vários pensadores contemporâneos, de diferentes formas e sob diversas perspectivas: “Metáfora é coisa séria, afeta a prática” (Stuart Hall); “As grandes narrativas conectivas do capitalismo dirigem os mecanismos de reprodução social” (Homi Bhabha); “Nomes engendram realidades” (Octavio Paz); “O sistema de informação impõe-se contemporaneamente como o lugar central de produção do real do Ocidente moderno” (Muniz Sodré).
Estes e outros intelectuais produziram reflexões que respaldam a advertência de Bernardo Toro e a proposta de “mudar a gramática do mundo”. São estudos, porém, inacessíveis à maioria da população – o que dificulta o combate ao ceticismo, obstáculo concreto às desejadas transformações. Dificuldades às quais, porém, o educador colombiano não se rende:
– Foi difícil, um dia, em função de uma maneira de pensar o mundo, acreditar que a Terra era redonda. De modo análogo, é difícil para um país como o Brasil, que dispõe de 30% da água do mundo, acreditar na escassez deste recurso.
Assim, de observações filosóficas a exemplos históricos; de reflexões abstratas a experiências palpáveis; de contextos gerais a problemas específicos; da psicanálise à ecologia, o sociólogo vai tecendo a tese da revolução sociocultural. E oferecendo chaves para o projeto de reconstrução da esperança – e do mundo. Uma síntese: a mudança de mentalidades, sob mediação da educação, tendo no horizonte a ética.
A mudança de mentalidades está intrinsecamente ligada à palavra “cuidado”. A começar pelo auto-cuidado, ou seja, cuidado com o corpo, com o espírito, com o que pensa, com o que diz; cuidado com o outro, esteja este outro próximo ou longe de nós – o que inclui o espaço público; cuidado com os recursos naturais, que são finitos, e estão acelerando, por mau uso, o fim de um tempo – o tempo da Terra.
– Não há opções ou condições para adiamentos: ou aprendemos a cuidar, ou não haverá chance de futuro.
Um aprendizado que passa por questões de gênero. Pela revisão dos valores masculinos.
– O homem foi criado para conquistar. Cuidado é uma palavra feminina. É preciso inseri-la no universo masculino.
Dignidade é outra palavra-chave da nova ordem ético-cultural, que inclui a econômica. O ser humano não pode parar de produzir ou de consumir, mas “tem que aprender a só produzir o que é útil, ou seja, aquilo que contribui para a dignidade humana. E a consumir de modo consciente”. Gravitando em torno deste novo sistema de valores, o modelo dos três “erres”: reduzir, reciclar, reutilizar.
Em outros termos, para desenvolver a “indústria do cuidado”, é necessário adicionar valores éticos a valores econômicos; substituir categorias de palavras-conceito (competitividade por cooperação, desperdício por austeridade...); transformar as relações de produção, colocando o modelo ganhar-ganhar no lugar do ganhar-perder, “que caracteriza todo o sistema político, social e econômico”.
Em resumo, as palavras-princípio “dignidade” e “cuidado” são basilares no estabelecimento de novas categorias de pensamento, e, portanto, de reconstrução do mundo. Mas como superar o descompasso entre o tempo necessário a tamanho grau de reeducação, ou de reestruturação mental, e a velocidade com que a destruição da Terra vem sendo trançada?
Como conseguir, dentro de 10 ou 15 anos, “mudar a gramática do mundo, transformar a consciência, criar espaços na mente para absorver uma nova maneira de pensar, estabelecer novas categorias de pensamento”, e, finalmente, promover mudanças no corpo físico da Terra, estancando o superaquecimento global? A equação de Bernardo Toro inclui, além da educação, as variáveis comunicação, política e estética.
– Com a comunicação, você trabalha o sentido; com a educação, o saber; com a política, os interesses; com a estética, ou a arte, você maneja a beleza.
Toro pontua que estas são variáveis já bastante desenvolvidas, e que “o grande desafio é alinhá-las”, em proporção e velocidade compatíveis com a necessidade, direcionando-as para o horizonte ético. E lista três “ferramentas” de que se pode fazer uso no processo de transformação: os políticos, os meios de comunicação e as elites – estas, compreendidas como “pessoas ou grupos cujas ações e decisões podem modificar os modos de pensar, sentir ou atuar de grandes setores da população”.
– Todo grupamento social tem sua elite. As prostitutas, os operários, os políticos...
Toro discorre sobre a importância deste último grupo na rápida disseminação dos novos paradigmas (“se os líderes falam, viabilizam a transformação”) e sobre os percalços no desempenho deste papel: “Muitos políticos já têm consciência do que é preciso ser feito. O desafio é fazer com que queiram falar, porque ao assumir esta tarefa, estarão assumindo o compromisso de mudar tudo”. E a maioria sequer sabe o que colocar no lugar dos modelos desconstruídos.
– Não é fácil para a China, por exemplo, parar de emitir gás carbônico, porque isto significa aumentar significativamente o nível de desemprego.
Enfim, as cores do quadro da reconstrução de Bernardo Toro são tão vivas quanto as do processo de destruição: muitas profissões desaparecerão. Conceitos como ética, transparência e honestidade ganharão valor de troca. Haverá uma reclassificação das ciências – algumas perderão importância, outras surgirão com força, como a “amigologia”. E a revolução – afiança o matemático – já está em curso na América Latina. Ponto de referência: Bogotá.
Interpretando Ítalo Calvino, Toro lembra que toda cidade é imaginada, porque não podemos ter uma visão total dela. Portanto, ao mudar um imaginário desfavorável, estaremos, automaticamente, transformando a cidade. “Identificar este novo imaginário e dar uma gramática à representação desejável da cidade” é ponto de partida para alcançar as desejadas transformações, a partir desta representação política a que chamamos cidade.
***
Entrevista exclusiva concedida por Bernardo Toro em maio de 2009, no auditório da Reitoria da Ufba, em Salvador, durante ato de mobilização do Movimento Nossa Salvador, promovido pela Fundação Avina, Instituto Ethos de Responsabilidade Social, Gife, Instituto Iris e outros.
Que é __________________Intelectual colombiano, com estudos em Filosofia, Física e Matemática. Considerado um dos mais importantes pensadores de educação e democracia na América Latina, no início dos anos de 1970, fundou a revista internacional “Educación hoy: Perspectiva Latino-americana”. Foi gerente da Cenpro Television e presidente da corporação Viva La Ciudadanía, durante a Constituinte Política da Colômbia. Prestou consultoria para o UNICEF, o BID, o Banco Mundial e alguns governos. Atual coordenador da Veeduría Especial para o Fundo de Investimento para a Paz (FIP) da Presidência da República da Colômbia, foi Decano Acadêmico da Faculdade de Educação da Pontífice Universidade Javeriana em Bogotá e desde agosto de 2005 é assessor estratégico da Fundação AVINA.