Suzana Varjão

A vida e a bela (fragmento de um conto sem fadas, príncipes, poções mágicas...)

Foto: Blande Viana

O pássaro de metal plana sobre o oceano — uma mancha azul infinda e quieta, como sua mente, agora. Testa colada no vidro da janela, vê o dia espreguiçar-se, lançando rajadas de luz verde-esmeralda sobre o manto d’água, que aos poucos se desentorpece, esboçando movimentos miúdos, quase imperceptíveis.

Gosta de observar a vida assim, do alto, bela e sem sobressaltos, como sua meninez. "Desce já dessa mangabeira, que tu cai!";  "deixa as galinhas em paz e vem comer!"; "vai se enxugar, ou pega uma friagem!". Ri ao recordar as zangas da mãe, traduções de uma infância-pés-descalços, plena de traquinagens e afetos.

O cheiro de jaca é o primeiro que aflora, sempre que o pensamento se desloca no tempo. Era uma das frutas mais requisitadas pelos fregueses dos afamados "Doces de Donana" — estratégia contra as turbulências do garimpo, de onde o pai tirava o sustento da casa e que, não raro, minguava.

Nunca ouviu discussão, lamento, reclamação, conversa que fosse sobre o assunto, mas sabia quando o plano B de sobrevivência era acionado, porque as refeições ficavam mais magras: o beiju perdia o recheio, o café ficava ralo; a banana-da-terra sumia da farofa; a carne de charque era substituída pela carne de jaca...

Por entre os flocos de nuvem, avista os primeiros sinais de solo: separado pela linha branca que limita o mar, um tapete cor de limão, retalhado, que nem as colchas que sua mãe costurava, unindo partes de variados tecidos. "O mundo é feito de pedacinhos como esses", dizia, quando contava histórias sobre outras terras e gentes.

Nunca lhe ocorreu questionar como ela sabia de lugares além daquele onde viviam. Só quando não mais podia perguntar, lhe contaram que nem ela nem o pai haviam nascido naquele chão. O gosto pela aventura e a esperança de prosperidade os haviam atraído, unido e fixado nas veredas repletas de cachoeiras, montanhas, grutas e rios.

O avião começa a perder altura. A textura uniforme dos retângulos vai se desintegrando, permitindo a aparição, aqui e ali, de picos de árvores em formato de cone, lagos, cascatas, formações rochosas... Como pode a natureza ser tão igual e tão diversa, domada como essa, insubmissa como a que sobrevive em suas recordações?

Adorava levar o farnel com o almoço do pai. Ficava de cócoras na beira das águas escuras, apreciando o vaivém dos pescadores de pedras, com seus chapéus de abas arriadas e suas peneiras gigantes. Tinha homem de tudo quanto é tipo: alto, baixo, de barba, cara lisa, cabelo à escovinha, cabeça raspada...

Quase todos eram moços. E magros. Exceto o que aparecia no meio do dia, de terno e gravata, barriga suada pulando pra fora da camisa. Chegava montado num burrico, com um ajudante puxando outro, lotado de matulas. A maioria se amontoava em torno dos dois, pegava a boia, ia pros cantos comer.

O pai corria pra sua "formosura", beijava, tomava o prato embrulhado nos panos, devorava "o melhor rango do mundo", se despedia, voltava a chacoalhar cascalho. Um dia chegou ensimesmado, foi deitar cedo, nem provou o feijão tropeiro, seu prato preferido, entre todas as delícias preparadas no fogão a lenha improvisado nos fundos da casa.

Dia seguinte, a mãe chamou pra uma conversa, não iria mais levar a comida do pai. Estava ficando moça, não era de bom tom. Foi sua primeira grande tristeza. A proibição implicava outras perdas, porque sempre que voltava do garimpo desviava o caminho, ia mergulhar no rio de pedras lisas e coloridas, muito mais bonitas do que as que os homens tanto procuravam.

À medida que a aeronave prossegue em sua rota descendente, a vista panorâmica vai se convertendo em closes que resignificam percepções, como a da planície pontilhada de flores brancas — vistas de perto, cruzes fincadas a espaço regulares numa vasta extensão de gramado verde-oliva.

Nunca soube se o pai teve direito a uma. Foi-se assim que realizou o sonho de encontrar uma pedra das grandes. Tão grande que não coube em seu picuá. Levou pra casa enrolada na camisa, a mãe quase teve um treco. Nessa noite não dormiram, ficaram zanzando pela casa, se preparando para a "grande viagem".

Morreu no dia seguinte, de tiro saído não se sabe de onde, dado ninguém sabe por quem. A mãe nunca mais foi a mesma. Parecia galinha com verme, tristonha, ciscando pelos cantos. Sumiu de uma hora pra outra. Disseram que foi ao encontro dele no fundo do poço com as águas mais frias das redondezas.

Da pedra também ninguém soube dar conta. E fica imaginando se alguém se pergunta por onde anda a sobra da família, desde que o homem de barriga suada a levou para outros pedaços do mundo, sempre cheios de mulheres pintadas, de coxas e seios à mostra, que a mimam e preparam para ser "uma dama".

O bimotor segue em voo rasante, sobrevoando a trilha de espumas que une — ou separa — terra e mar. As batidas do coração disparam, enquanto observa as ondas arrebentando nas falésias, o fluxo e refluxo incessante das águas, os restos de uma embarcação sendo arremessados contra os rochedos.

Em meio aos destroços, uma andorinha morta.

(porque hoje é domingo)