Suzana Varjão

Revanche (devaneios em pleno turbilhão do carnaval)


Foto: Rejane carneiro

Apesar do esforço para manter a atenção sobre o cenário geral da festa, não consegue desgrudar os olhos dos dois. Desde que o bloco deixou o ponto de concentração e despejou a torrente humana na avenida, eles se destacam do conjunto, provocando pensamentos e sensações desconcertantes.

Ele parece ter consciência da exuberância do corpo, da pele cor de bronze, realçada por colares de contas douradas. Tem a frente da camiseta puxada para trás, por cima da cabeça, de modo que, estando vestido, exibe, ao mesmo tempo, o peito nu — um peito-armadura, sem pelos, largo, belo, obsceno.

Ela usa uma tiara de flores de lavanda que acentua o azul turquesa dos olhos e lhe empresta um ar angelical, em oposição à aparência lasciva dele. Os cabelos, de um cacheado graúdo, descem em cascata até a cintura, que se dobra e se retesa, no compasso de movimentos provocantes, sublinhados pelo abrir e fechar dos lábios tingidos de vermelho escarlate.

Vestem a mesma indumentária das cerca de três mil pessoas que se comprimem ao redor do trio elétrico, mas, neles, os shorts minúsculos expõem pernas longas, bem torneadas e algo angulosas — bem diferentes dos cambitos adolescentes da maioria dos associados da agremiação carnavalesca.

Destoam da multidão quase padronizada do bloco em vários aspectos. Não se observa, neles, a alegria pueril, quase inventada, da maioria dos jovens foliões. Seus passos são sensuais, sem pressa, desdenhosos. Por que estão ali? Por que se misturam com o mundo, se estão – parecem querer estar – sós?

Dançam, notadamente, um para o outro. Ele, numa espécie de bailado machio, demarca território — gira em torno da presa, afasta-se e aproxima-se, liberta e aprisiona. Ela corresponde ao jogo, resistindo, cedendo, esquivando-se, oferecendo-se... E mesmo no meio de um ninguém-é-de-ninguém, não há quem invada o espaço deles.

Amor de carnaval / desaparece na fumaça / saudade é coisa / que dá e passa...

O refrão da marchinha aguça a sensação de desconforto. Tenta afastar a ideia da cabeça, mas quanto mais o affair se desenrola, mais sente vontade de interpor-se entre os dois, romper o campo magnético, destituir o monopólio da sedução, desestabilizar a pretensa monogamia, escancarar, enfim, a feiura moral encoberta pela beleza física.

Não sabe bem o que provoca maior incômodo, se a desvergonha da luxúria publicamente exposta ou a farsa da inocência, do sentimento puro, da delicadeza dos gestos que, tão logo esgotado o tempo da corte, se transmutam em impaciências e desatenções — quando não em brutalidades e violências.

Chega a sentir náuseas ante a visão dos paralelepípedos pontilhados de confetes, a face semienterrada na lama... Era domingo, também. E chovia — água e sonhos escorrendo pelos bueiros...

Uma fileira de malhados invade a arena privada da folia aos socos e pontapés, desmantelando, na passagem, o fluxo cadenciado da massa e provocando protestos. O som é interrompido, a vocalista da banda orienta a perseguição policial, mas a gangue embrenha-se nas ruelas mal iluminadas que desembocam na via principal e desaparece.

Ao reconduzir as retinas para o rito da conquista, no chão da praça, depara-se com o par de olhos castanhos pousados nos seus. Em cima do trio, com dezenas de pessoas ao redor, sobressaíra-se, também, sabe-se lá como, por que... Num impulso, sorri. Ele corresponde. Ela acompanha o meneio de corpo dele, percebe o flerte e... sorri também.

Não era propriamente a reação que havia previsto, em seu devaneio, mas se entrega ao jogo proposto, e, durante o restante do percurso, não desviam as vistas uns dos outros. Furtivos e cúmplices, vigiam-se, cultuam-se, prometem-se — o flagrante de traição transformado em atalho para o desfrute a três.

Mas o que para os dois soa como início, é fim de partida.

Faltando pouco para chegarem ao ponto de dispersão do bloco, a última cartada, o derradeiro movimento de recusa: afasta-se da grade de proteção, mistura-se aos convidados, camufla-se, aguarda. Quando os motores são desligados, desce, oferece uma ajuda qualquer, remancha, espreita o lado de fora, sai.

Na rua empestada de urina e lixo, poucos vultos, passos cambaleantes, roupas e modos em desalinho. Nas calçadas entulhadas de barracas, homens, mulheres e crianças — a maioria, negra — dormem sobre folhas de papelão, amontoados, as caixas de isopor servindo de travesseiro; páginas de jornais, de cobertores.

Agora, sim, as máscaras cairão. Ela cobrará dele a exclusividade jurada; ele a acusará de cumplicidade no despudor... Senta-se rente ao tapume de uma arquibancada vazia, respira fundo, cerra as pálpebras. O ar fresco da madrugada vai, aos poucos, suavizando os efeitos do álcool e da mágoa, dando lugar a uma sensação de culpa... de vergonha, também...

Como pudera render-se a uma desforra tão sem propósito, aleatória, infantil, mesquinha? Que submundo será esse que habita dentro de si, feito de fantasias ridículas, atitudes indignas, comportamento vulgar, emoções baratas... Mas... Não vale a pena se martirizar por conta de um desvario...

Tenta levantar-se, mas uma mão em seu ombro obsta o movimento. Ergue as vistas e depara-se, primeiro, com ela. Tirara a peruca castanho-avermelhada, exibindo uma cabeleira loura, rala, cortada à escovinha. O suor borrara a maquiagem, revelando restos de uma barba malfeita...

(porque hoje é domingo...)