Suzana Varjão

O vão (flashes sobre o território do medo)


Foto: Suzana Varjão

Olha fixamente a ponta de cigarro caída no chão. A capa do filtro está suja de barro, assim como o papel que reveste o tabaco — antes, por certo, branco; agora, de coloração imprecisa. O rasgo irregular expõe parte do fumo, acusando uma pressão firme contra a superfície arenosa do terreno.

Há quanto tempo estará ali?

O ar morno, parado, atiça o coquetel de cheiros — os de fezes, urina e mofo alternando-se nas narinas —, e os olhos mal conseguem identificar, aqui e ali, outros sinais inertes de vida: um naco de papel higiênico, um copo plástico amassado, um palito de picolé, uma garrafa vazia, uma camisinha...

Uma sombra perpassa, em fração de segundos, os filetes de luz que perfuram o espaço, denunciando  um movimento ligeiro, furtivo, que se encerra em um dos cantos do vão. Apura a vista e distingue uma diminuta pata e um rabicho, fino e comprido, que permanece sob um dos fachos que dão alguma claridade ao ambiente.

Haverá também baratas?

Sente os pelos do corpo eriçarem-se ante a sensação do bicho cascudo, de pernas felpudas, rastejando sobre o lençol com que buscava se proteger durante as sinfonias de asas farfalhantes que irrompiam nas noites que precediam tempestades. Podia ouvi-las saindo, uma a uma, dos esconderijos, instaurando nela o tique-taque da vigília e do medo.

— Levanta!

A ordem chegava mal pegava no sono. Era preciso liberar a mesa-cama para o café — quando havia; lavar o rosto, calçar os chinelos, vestir a farda, entrar na fila de ônibus, subir naquelas enormes caixas de metal, que venciam as ladeiras relinchando, quase sempre parando, os passageiros descendo para diminuir o peso...

Já não disputa assentos naquelas latas ambulantes atulhadas de gente de pés ligeiros, sacolas e balaios: perdera os calos das mãos, ganhara rugas e dinheiro, comprara carros do ano, visitara Londres e Paris. De literatura a técnicas de autodefesa, acumulara bastante conhecimento. Só não aprendera a libertar-se de cativeiros.

Corre! Corre! Corre!

Num primeiro momento, não capta o sentido das palavras, gritadas do lado de fora da grota de madeira e ferro, até que pancadas nervosas nas tábuas que protegem a saída a sacodem e a livram da pasmaceira: termina de secar a urina, veste rapidamente as calçinhas e precipita-se para fora, onde duas faces aflitas a esperam.

Rápido, o trio elétrico já vai passar!

Afasta-se do socavão formado pela estrutura de sustentação das arquibancadas do carnaval, enquanto os sons vão retornando aos poucos, como chuviscos, misturando-se a uma profusão de  cores e movimentos, até formarem um turbilhão contraditoriamente estático e vivo; ensurdecedor e mudo, como no quadro "O Grito", de Edvard Munch.

(porque hoje é domingo...)