Suzana Varjão

O adeus (ou um funeral pra lá de estranho)


Foto: Suzana Varjão

Malditas lágrimas! Por mais que tenha irritado os olhos para provocá-las, elas não descem! E dele, o caçula, não se espera outra coisa ante a inesperada tragédia senão soluços, lágrimas, desespero. Mas por mais que se esforce… Olha à volta e observa o peso dos olhares, a súplica coletiva e silenciosa para que cumpra o papel que cabe a um filho querido num momento desses...

Chora... Chora... Chora...

A cobrança maior é do tio. Consegue senti-la, mesmo sem encará-lo. E com razão. Com toda razão. Precisa corresponder às expectativas... Precisa cumprir... Precisa... Precisa manter a cabeça fria! Cadê coragem pra encarar Mariana? Coitada. Mal consegue ficar em pé. E ele, em vez de tristeza, sentindo aquele alívio doido no peito… Devia ter contado a ela, mesmo correndo risco de não ser compreendido...

Lembra das fotos estampadas nos jornais e sente um arrepio. Os corpos dos amantes, lado a lado, na cama do motel de beira de estrada; o revólver, o sangue... "Crime passional: matou a amante e se matou", foi o que noticiaram. Sente uma pena enorme da moça... Não, não pode pensar nisso... Era uma prostituta. Fez por merecer aquele fim. E seu pai… Bem, seu pai está livre dos abutres, afinal.

Já não aguentava vê-lo sofrer com tanta perseguição, tantas mentiras, tantas ameaças, tantas acusações de corrupção. Depois de tudo que tinha feito pelo País, não era justo ser preso, algemado publicamente, coberto de vergonha e humilhação. Não era justo com ele nem com a família. Seria fatalmente arruinada... Algo tinha que ser feito... Pro bem de todos.... Mariana precisa entender isso.

A desonra, administrada gota a gota, dia após dia, machucaria infinitamente mais do que a dor que sente agora. Ela teria concordado, se tivesse lhe contado. Não era ela que dizia que os castigos físicos doíam menos que as ausências do pai? Que as surras feriam menos que a decepção que sentia quando ele não aparecia no teatro da escola para vê-la representar, por exemplo? Então... Ela vai entender, e vai perdoá-lo.

Precisa confiar na cumplicidade que sempre tiveram, e que nem o tratamento desigual do pai conseguira abalar. Ela percebia a preferência por ele, mas minimizava ("Você é filho homem, natural que ele tenha mais afinidade..."), encontrando sempre uma explicação lógica para os sinais de predileção, como quando passou no vestibular, e ganhou um carro ("não me deu também porque nunca precisei... homem tem que ter mais mobilidade...").

Parece um pesadelo…

Estremece. A voz consternada do amigo soa como um presságio. E se tudo não passar mesmo de sonho? Ou de imaginação? Tenta ordenar as cenas que giram em sua mente, desconexas — a chamada na televisão; o tio chegando às pressas; a conversa reservada... Ou o tio chegara antes do noticiário sobre as mortes? Qual seria a ordem certa dos acontecimentos? Aliás... o noticiário fora sobre as mortes ou sobre a prisão do pai?

Grossas gotas de suor escorrem por suas têmporas, que latejam. Sede, dificuldade de respirar, aperto no peito... Até quando terá que suportar esse odor de flores mortas, esse murmurejar acusatório, esse farfalhar de sedas pretas que ecoa, como o bater de asas de aves agourentas? Quanto tempo mais vai durar esse teatro fúnebre, esse jogo de falso e verdadeiro... Seu pai seria mesmo herói ou bandido? Vítima ou réu?

Fita o rosto retesado do cadáver, que parece sorrir, e sente um sobressalto. Quem será o homem nesse caixão, afinal? Precisa manter a calma... Não pode pôr tudo a perder. Falta tão pouco… Mas a cada dúvida, a cada reviravolta na linha de raciocínio, sente uma vontade incontrolável de gritar, de contar a verdade... Melhor dizendo, de saber a verdade, porque já não tinha certeza de nada...

Calma, garoto…

A voz sussurrada do tio e a pressão cúmplice dos dedos em seus ombros prende sua mente na ambiência física do velório. Chora. A divagação fizera-o cumprir sua parte na cena, afinal! Passa as vistas pelos presentes, e a sensação de alívio o invade outra vez. Ninguém mais pode duvidar do seu sofrimento. Seu pai está morto, e ele, o filho predileto,  está inconsolável no funeral.

Vamos?

Antes que fechem o caixão, volta a observar a máscara semicoberta por crisântemos. Como pudera duvidar? Por mais perfeita que fosse... Não, definitivamente, aquele corpo não era do seu pai. À saída do cemitério, segura firme a mão da irmã. Tem, mais uma vez, que controlar o impulso para não lhe contar a verdade. Só mais um pouco e lhe dará o grande presente. Comemorarão, os três, o Dia dos Pais longe, muito longe daquele arremedo de País…

(porque hoje é domingo...)