Fonte: pxhere/Creative Commons
"Papai, você pode me limpar?". "Papai, você pode brincar comigo montando o quebra-cabeças?". "Papai, você me ajuda a fazer um castelo de areia?". "Minha barriga está doendo, papai".
Pedidos de ajuda, pedidos de participação, pedidos de contato humano. Sem dissimulação, sem fingimento. Como se me dissesse com os olhos: "Você sabe que eu existo. E estou aqui, papai".
Minha filha de 3 anos faz isso espontaneamente. Outro dia, tive uma dor abdominal horrível. Sentia como se estivesse sendo esfaqueado por um açougueiro samurai por dentro. Pensei que fosse o dia que ia me libertar desse mundo. Mas não pedi ajuda pra ninguém. Penso que já preocupei demais as pessoas em minha vida pregressa e desregrada.
Luizão, zelador, viu que eu não estava bem, mas, pateticamente, tentei disfarçar para não incomodar. Orgulho, medo de me mostrar fraco, vulnerável, medo de me mostrar como sou de verdade. Dê o nome que quiser.
O mundo nos manda marchar firmes como mula de carroça, como se fossemos de aço. Então montei em minhas próprias pernas e fui me arrastando, caindo pelo caminho. Sozinho, não queria precisar de ninguém. E lembrei-me de minha filha pedindo ajuda, com a voz mais doce do mundo, e a certeza de que eu ia estar lá por ela. E a recordação da mais velha (6 anos) me abraçando e me beijando o rosto: pedindo que a protegesse da chuva gelada.
Estava um calor dos diabos: minha alma sentia tanto frio. E foi uma lição pra mim. Porque ter com quem contar, num mundo cada vez mais egoísta, pode ser um acalanto. Não tive nada grave, mas descobri que não estou sozinho. Minha mulher e meu sogro estavam lá. Até minha mãe e minha irmã, o pai, que moram longe quiseram me ajudar. Muita gente.
Claro que nascemos e morremos sozinhos - mas entre parto e morte -, somos abençoados pela presença de amigos, filhos, pais, cães, pássaros, chuva, sol, sorriso de criança, amor. Seria cruel demais se não fosse assim.
A imagem da bondade, enquanto a dor me consumia, era do bispo Myriel (Os Miseráveis, Victor Hugo) de braços abertos e o coração exposto. As famílias cujos pai ou qualquer ente querido tinham falecido, não precisavam nem chamá-lo: ele ia por conta própria. Sabia sentar-se quieto ao lado do homem que havia perdido a esposa que amava; ao lado da mãe cujo filho tinha morrido. Como sabia em que horas devia calar, sabia igualmente quando devia falar. Isso é arte.
Myriel não procurava destruir a dor pelo esquecimento, mas engrandecê-la e dignificá-la pela esperança e pelo amor de sua presença viva.
E o processo de aprendizagem da paternidade é como uma criança aprendendo a andar. Parece um contrassenso, mas é isso mesmo. É perder o equilíbrio entre um passo e outro. É cair e levantar, cair e levantar, de novo, de novo. E não saber se vai conseguir é um dos grandes mistérios da experiência, da vida, do avô, do pai, do filho, do neto. Eu não sei se vou conseguir. Mas vou assim mesmo.
Cultivar o desapego é um dos fundamentos dessa vida. Cada dia que passa estamos mais próximos do dia que iremos morrer. E ninguém sabe como fazer isso. "Criança não morre, né papai?" - sussurra minha filha em meu ouvido. Arrepio-me todo!
Por que li tanto Nietzsche? Existem momentos em que somos desafiados a arrancar a fachada, o disfarce, a extirpar os furúnculos da alma e nos revelarmos. E ouvir como quem ouve a mais perfeita oração: "Criança nunca morre, papai". Uma afirmação. Uma vela acesa na escuridão.