Cassiano Antico

Uma canção desafinada contra as dores da filha no meio da noite

 
Rega as tuas plantas/Ama as tuas rosas/ O resto é a sombra/De árvores alheias
-- Ricardo Reis/Fernando Pessoa

Os planos são abertos, a cor é de terra, as pessoas tem sede, eu não tenho pressa, o vermelho, o vermelho é o boné em destaque. Estou no "Paris, Texas", do Wim Wenders.

Foto: Divulgação
Cena de Paris, Texas
Cena de "Paris, Texas"

Fui gerado num ato de amor, também. Tenho certeza disso. Uma das poucas certezas que tenho nessa vida. E minhas filhas também foram. Se pudesse, também compraria aquele pedaço de deserto pra mim e pra minha família. Jogaria bolas de gude com minhas meninas. Sem fotografia.

Poucos dias depois que Valentina saiu da maternidade, e estava em casa, teve cólicas terríveis, o minúsculo corpo humano se cortorcia de dor, agitava-se por clemência. E o meu sofria de impotência aguda. Tentamos de tudo, para aliviar o suplício de nossa filha. Mas pai de primeira viagem é igual  formiga: enxerga tudo gigante. E aquele bebê, tão pequeno, tão frágil, cabia na palma da minha mão.

Fizemos massagem em sua barriga, ligamos pro pediatra (que dizia que era normal), nós a colocamos de bruços. Ju, nocauteada pela exaustão, levou um soco do sono. Fiquei com minha filha. Minha filha que foi desejada, gerada com amor - como o personagem do Wim Wenders -, que encanou em comprar aquele pedaço de deserto, nos Estados Unidos, chamado Paris Texas - que não tinha nada além de pedras e areia -, mas foi justamente alí, naquele lugar que não valia nada, que ele foi gerado. Gerado com amor!

Tal imagem tão forte e pungente me roubou o início do texto. Fui bem roubado. Então, peguei Valentina, abracei com todo cuidado do mundo, como se estive escrito em letras garrafais no pacote humano: "frágil", e comecei a andar com ela pela casa, mostrando meus vinis, meus livros, meus quadros, sussurrando com minha voz grave uma canção da banda The Stooges "In my room I want you here / Now we're gonna be face-to-face / And I'll lay right down in my favorite place."

Ela parou de chorar. Milagre? Não. Deve ter pensado assim: esse cara canta mal pra cacete. Virei o rosto de minha filha pra mim. E mergulhei de ponta em seus olhos. Ela me encarou. Pensei: não vai ser como um dogue alemão babão que se contentará com pipoca, ração e jogos na tv comigo.

Os olhos revelavam vontade própria. Como a gente era antes de nos borrarem os sentidos, antes de nos roubarem a alma. Seu rosto, apesar dos poucos dias de vida, já era muito expressivo. Vi todos alí: minha avó, minha mãe, bisavó, minhas tias italianas, Ju, os parentes russos da Ju, e uma ancestralidade de mulheres fortes rompendo grilhões. E alguém livre. Sem mácula.

Senti um arrepio na espinha de como quem entra em contato com a pureza, num mundo tão impuro, subitamente, e não sabe o que dizer, não tem o que dizer. E você, simplesmente, ama porque a força do amor te arrasta como uma tromba d'água. O amor te arranca máscaras. O amor te torna vulnerável. O amor te torna humano. O amor te salva. Uma epifania, como alguém que encontra a última peça do quebra-cabeças.

E vi aquela mãe do noticiário da tv que deu a vida pela filha. A enchente arrastava as duas, e, num gesto "sobrenatural", a mãe salva a filha antes de se entregar à violência da natureza e morrer. Morrer por amor. Quase entendi alguma coisa. "É, meus joelhos enfraqueceram" (The Doors). Não consigo dizer o que senti. Não inventaram palavras pra isso.

Da janela aberta mil estrelas davam boa noite pra Valentina. Agradeci a tudo e a todos, como uma oração. Lembro que tentei cantar: "Foi por medo de avião que eu segurei / pela primeira vez a tua mão" (Belchior). E eu que sempre tive medo de altura, dormi com uma paz no coração que nunca havia sentido antes. Barriga com barriga com minha filha. A dor havia ido embora sem se despedir.