Os planos são abertos, a cor é de terra, as pessoas tem sede, eu não tenho pressa, o vermelho, o vermelho é o boné em destaque. Estou no "Paris, Texas", do Wim Wenders.
Cena de "Paris, Texas"
Fui gerado num ato de amor, também. Tenho certeza disso. Uma das poucas certezas que tenho nessa vida. E minhas filhas também foram. Se pudesse, também compraria aquele pedaço de deserto pra mim e pra minha família. Jogaria bolas de gude com minhas meninas. Sem fotografia.
Poucos dias depois que Valentina saiu da maternidade, e estava em casa, teve cólicas terríveis, o minúsculo corpo humano se cortorcia de dor, agitava-se por clemência. E o meu sofria de impotência aguda. Tentamos de tudo, para aliviar o suplício de nossa filha. Mas pai de primeira viagem é igual formiga: enxerga tudo gigante. E aquele bebê, tão pequeno, tão frágil, cabia na palma da minha mão.
Fizemos massagem em sua barriga, ligamos pro pediatra (que dizia que era normal), nós a colocamos de bruços. Ju, nocauteada pela exaustão, levou um soco do sono. Fiquei com minha filha. Minha filha que foi desejada, gerada com amor - como o personagem do Wim Wenders -, que encanou em comprar aquele pedaço de deserto, nos Estados Unidos, chamado Paris Texas - que não tinha nada além de pedras e areia -, mas foi justamente alí, naquele lugar que não valia nada, que ele foi gerado. Gerado com amor!
Tal imagem tão forte e pungente me roubou o início do texto. Fui bem roubado. Então, peguei Valentina, abracei com todo cuidado do mundo, como se estive escrito em letras garrafais no pacote humano: "frágil", e comecei a andar com ela pela casa, mostrando meus vinis, meus livros, meus quadros, sussurrando com minha voz grave uma canção da banda The Stooges "In my room I want you here / Now we're gonna be face-to-face / And I'll lay right down in my favorite place."
Ela parou de chorar. Milagre? Não. Deve ter pensado assim: esse cara canta mal pra cacete. Virei o rosto de minha filha pra mim. E mergulhei de ponta em seus olhos. Ela me encarou. Pensei: não vai ser como um dogue alemão babão que se contentará com pipoca, ração e jogos na tv comigo.
Os olhos revelavam vontade própria. Como a gente era antes de nos borrarem os sentidos, antes de nos roubarem a alma. Seu rosto, apesar dos poucos dias de vida, já era muito expressivo. Vi todos alí: minha avó, minha mãe, bisavó, minhas tias italianas, Ju, os parentes russos da Ju, e uma ancestralidade de mulheres fortes rompendo grilhões. E alguém livre. Sem mácula.
Senti um arrepio na espinha de como quem entra em contato com a pureza, num mundo tão impuro, subitamente, e não sabe o que dizer, não tem o que dizer. E você, simplesmente, ama porque a força do amor te arrasta como uma tromba d'água. O amor te arranca máscaras. O amor te torna vulnerável. O amor te torna humano. O amor te salva. Uma epifania, como alguém que encontra a última peça do quebra-cabeças.
E vi aquela mãe do noticiário da tv que deu a vida pela filha. A enchente arrastava as duas, e, num gesto "sobrenatural", a mãe salva a filha antes de se entregar à violência da natureza e morrer. Morrer por amor. Quase entendi alguma coisa. "É, meus joelhos enfraqueceram" (The Doors). Não consigo dizer o que senti. Não inventaram palavras pra isso.
Da janela aberta mil estrelas davam boa noite pra Valentina. Agradeci a tudo e a todos, como uma oração. Lembro que tentei cantar: "Foi por medo de avião que eu segurei / pela primeira vez a tua mão" (Belchior). E eu que sempre tive medo de altura, dormi com uma paz no coração que nunca havia sentido antes. Barriga com barriga com minha filha. A dor havia ido embora sem se despedir.