Suzana Varjão

As miseráveis (sobre uma gente sem face, sem voz, sem sorte...)

Moedas
Foto: Suzana Varjão

Desperta com um alarido ensurdecedor e corre para a janela do quarto. Gritos, latidos, buzinas e ruídos de freios somam-se a uma movimentação caótica de homens, mulheres , crianças, cães. Apura a visão ainda embaçada e identifica o foco da desordem: as duas mendigas da área.

Conhece-as desde que se mudou para a zona sul da cidade, deixando para trás as vielas de terra cortadas por filetes de água fétida que povoaram sua infância e juventude — as paredes sem reboco das casas; os canteiros de lixo; os disparos de armas de fogo; as arrelias de bêbados e meninos...

Arruaças eram banalidades em territórios áridos de cidadania, mas na ambiência do novo bairro, destoavam. E incomodavam. Pele tostada pelo sol, cabelos desgrenhados, trapos de tonalidades indefinidas e pés descalços, as mulheres ocupavam, com descerimônia, os equipamentos e espaços públicos, privados e privatizados das redondezas.

As calçadas e gramados eram seus penicos; as praças, suas salas de estar. Os playgrounds serviam ora de refeitórios, ora de quartos de dormir — os irrigadores temporizados dos jardins funcionando a um só tempo como duchas e equipamentos de recreação, as risadas ressoando aqui e ali, principalmente em dias de sol forte e brisa pífia.

As atitudes das pedintes eram de escancarado desafio. Enfrentavam as pequenas repugnâncias com deboche; as recusas, com escárnio; as proibições, com arremedos e zombarias. Sobreviviam de um prato de comida aqui, um naco de pão ali, um cobertor surrado acolá — caridades retribuídas com afetações e desdéns.

Corriam teses sobre o porquê daquela vida errante, o significado de modos e linguajar que, apesar de caricaturados, remetiam a certo refinamento: irmãs e órfãs, teriam perdido bens e recursos herdados para um golpista, que conquistara e desposara a mais velha, abandonando-a tão logo vendera seus bens e limpara sua conta bancária.

Havia quem garantisse que se tratavam de mãe e filha fugidas da terra natal para escapar de um cotidiano de ameaças, humilhações, privações financeiras, espancamentos, abuso sexual e toda sorte de pequenos e grandes exercícios de poder, controle e dominação do provedor da casa.

Em uma terceira narrativa, seriam remanescentes de uma rede internacional de tráfico de mulheres para fins de exploração sexual abandonadas à própria sorte após a desarticulação do braço local da quadrilha — o que o palavreado enrolado, as vestes extravagantes e os hábitos um tanto excêntricos de ambas reforçavam.

Uma quarta versão expunha a saga de duas nobres raptadas e escravizadas...  

Enfim, rolavam várias estórias — algumas verossímeis, muitas fantasiosas, todas desembocando na perda da referência territorial e do juízo.

— Segura, segura, segura!

Um rapaz agarra a saia da mais velha, mas ela consegue desvencilhar-se,  gargalhando e rodopiando à sua frente, enquanto dois outros tentam cercá-la. A mais jovem acorre, joga um punhado de areia na direção dos homens, puxa a parceira pelo braço e corre, ziguezagueando e desorientando seus perseguidores.

Há algo além de destituições na trajetória dessas mulheres — pensa, enquanto varre a cena, à cata de uma pista que revele a razão do fuzuê da vez. Mais que fugitivas, assemelham-se a combatentes. Acostumadas a sedas ou chitas, parecem ter rompido com algo menos ordinário que o jugo material.

É certo que contam com benevolências, mas a convivência com os moradores em geral está longe de ser pacífica — o que se pode inferir pelas incontáveis reuniões dos condomínios e da associação do bairro (que aliás nunca chegam a um consenso sobre o que fazer com aqueles pontos fora da curva, não obstante a veemência dos discursos e dos reclamos).

Dos argumentos favoráveis ao saneamento da área escorrem condescendências e ódios. E a partir dos diagnósticos, despontam soluções as mais diversas: encaminhamento para centros de assistência social; internação em casa de repouso, para tratamento de insanidade; detenção, baseada em desordem pública; captura, surra, pó de pirlimpimpim.

Onde alguns enxergam desafio social, exercício democrático, compaixão redentora, outros veem sujeira, desvalorização imobiliária, desordem, degradação moral e doenças, transformando a zona residencial num campo de batalha entre pragmáticos e abstratos, distopias e quimeras.

Havia dias em que o pânico higienista assaltava seu sono, e das mulheres brotavam excrementos, que se espalhavam pelas ruas, cobriam calçadas, invadiam prédios, contaminavam reservatórios... A peste alastrava-se pelo bairro e redondezas, convertidos em territórios de ninguém.

Em outras ocasiões, as desgarradas se revelavam, finalmente, assumindo a identidade de feministas disfarçadas, prontas para intervir em favor de outras miseráveis: mulheres vencidas e convencidas de que nada são além de adendos e adornos do mundo masculino; seres sem face, sem voz, sem vontades...

Uma saraivada de aplausos, assovios e vaias reconduz o foco de sua atenção para o cenário físico da discórdia. A configuração do rebuliço havia mudado. Mais ordenada, menos ruidosa, a multidão movimenta-se em torno de uma espécie de andor, sustentado acima dos ombros por homens de jalecos e gorros brancos.

O cortejo aproxima-se de sua janela. Sobre a padiola, as dominadas jazem, imobilizadas por fios metálicos. Um dos carregadores puxa o lençol que as cobre, expondo as partes íntimas de uma das mulheres, que ele comprime, empurrando sobre elas os babados enlameados da saia rodada.

Como se protegido por um véu de tule — que cobre mas não oculta feições —, o rosto pretensamente sóbrio do homem esboça fina expressão de prazer.

(porque hoje é domingo...)