Cassiano Antico

O pranto atrás da árvore e o pequeno hitler engravatado

Pipa
Foto: pxhere/Creative Commons

 
Você não é amado porque você é bom, você é bom porque é amado
-- Nelson Mandela

Já li em muitos lugares que a mais alta manifestação de amor ao próximo não passa, no fundo, de mero egoísmo. Não consigo entender como isso poderia ser considerado autêntico. Como tratar um ser humano com a devida dignidade?

Por um período, trabalhei numa fazenda coordenando a construção de uma nova ala. Tinha, na minha pequena equipe, um jovem  que constantemente era motivo de chacota pelos colegas por ser educado, bondoso e prestativo ao extremo. Certo dia, deixou, por descuido, uma porteira aberta, e fomos invadidos por vacas, bezerros, cavalos que pisaram sobre o chão que tínhamos acabado de cimentar. Dei-lhe uma bronca. Ele saiu correndo e se escondeu atrás de uma árvore. Foi uma das poucas vezes que vi um homem do campo chorar, e chorar tão sentido.

Era uma figura de fisionomia simpática e que irradiava luz em meio a criaturas soturnas, mal encaradas e arrogantes. Senti-me muito mal comigo mesmo. Fui "puxar-lhe as orelhas" em meio a hienas, chacais. Grotesco! Eu me desculpei de coração com ele. Disse que errei e que erro e que quero melhorar. Um tempo depois, ele bateu no meu ombro, abriu um grande sorriso no rosto, feliz da vida. Um dia, ele me entregou uma pipa gigante. E me disse que era um presente. Nem me esperou agradecer. Foi logo fazer suas coisas. E que pipa! Uma verdadeira obra de arte! Assim como todo o trabalho que realizara na fazenda.

A obra na fazenda acabou há muito tempo e até hoje me lembro daquele garoto de coração puro e sorriso contagiante. Pra mim, ele foi um dos seres humanos mais competentes que tive a honra de conhecer. Porque quando se fala em competência, hoje, pensamos em cifras, números, bolsa de valores lá em cima, lucros, dólar despencando, vendedores vendendo a própria mãe. Lógico que bufunfa é bom. Mas não vem na frente das pessoas e muito menos das relações humanas. Dinheiro deve nos servir. E não o contrário.

Como será para minhas filhas a tal inclusão profissional num mundo cada vez mais hostil, competitivo e desleal? Um mundo repleto de personagens que zombam da bondade, da delicadeza e da honestidade? Elas já vivem nele, mas o mundo delas ainda é gentil, tem gente de todas as cores, as diferenças são incentivadas e respeitadas, não se rouba no jogo, e sempre, sempre cabe mais um.

Minhas filhas constroem castelos de areia na beira do mar e os destroem só para poderem construir outros maiores e mais bonitos. E fazem o mesmo com os brinquedos. Brinquedos quebrados também encontram espaço na brincadeira e são peças fundamentais.

Eu sempre tive orgulho do meu relógio quebrado, seu ponteiro parou em algum lugar de minha infância, onde, talvez, ainda more um garoto de coração bom e generoso, como aquele garoto do campo, que muitas vezes é dado como morto. Morto por mim.  

Trabalhei em algumas empresas de grande porte, mas uma, em particular, vale destacar. Porque representa o símbolo do atraso, de erros que repetimos há séculos. E que concluo ao final do texto. Vamos começar pelo presidente. Um pequeno hitler, uma criatura terrível. Causava em todos os funcionários uma impressão apavorante. Sempre pensei ser impossível existir alguém mais monstruoso e malvado. Repugnante. O rosto todo enrugado, apesar de não ser velho - era a expressão do diabo engravatado e cabelos penteados. A testa parecia conter pequenos chifres. Tinha um segurança, um lacaio gordo e careca com o rosto vermelho, que andava armado até os dentes, e que tinha um cão de guarda campeão de rinha. De sua sala era possível ouví-lo cantar Reginaldo Rossi com seu estagiário de alcunha Bob Marley - sempre com olhos vermelhos -, uma baba seca no canto da boca, quase dormindo na cadeira. 

Todo contato que tive com o presidente era como se estivesse diante de uma aranha monstruosa, do tamanho de um ser humano adulto.

Num mundo em que a posição que o sujeito ocupa é a coisa mais importante, a patente bordada chefinho no meio da testa de um sujeito alastra tapetes vermelhos, abre paredes, destrói, escraviza, estampa camisas até pros mais monstruosos torturadores da história.

Coisas como caráter, bondade, justiça, virtude não existiam naquela aranha obcecada, endiabrada e completamente cega pelo poder. Não dava pra dizer se a maldade era trauma de infância, se roubaram o piazinho dele, ou se ele era o próprio belzebu. Na cara dura empregou a mulher, amigos, fez pactos sórdidos com tribunais, empresas, repetiu atitudes ilegais que foram punidas em gestões anteriores. Arrumou uma exótica peruca pro seu lacaio predileto. Discursava com a perfeição de um robô japonês de última geração. Sem entonação. Se você fechasse os olhos, não poderia imaginar que havia algo humano alí. Frases decoradas, burrice travestida de citações inteligentes, sem emoção, sem vida, sem alma, sem nada.

Há gente que acredita que praticar um mal menor seja menos danoso. Não existe mal menor. Ou mal anão. Ou mal corcunda. Ou mal atlético. Ou mal formiga. Ou mal brutamontes. Existe o mal. Ou seria o mesmo que eu falar para minha filha que tudo bem ela roubar um lápis ou uma boneca da colega. Afinal, é só um lápis, uma boneca. Mas não é apenas isso. É roubo. É errado. Nenhum motivo justifica tal prática canalha.

Se você ler "Almas Mortas" (Gogól) terá a impressão de que trechos inteiros que lá estão escritos foram incorporados na série "O Mecanismo", e jogados direto pra boca do Selton Mello. Suborno, contratos sem nota fiscal, desvio de dinheiro público, funcionário indicado pelo servidor público para assumir o alto escalão para "cuidar" de pregões; o câncer se alastrandro nas entranhas do sistema; obras superfaturadas. 

Os funcionários, embora confinados como galinhas assustadas não estivessem presos a grilhões e se arrastassem pela empresa, carregavam nos olhos a opressão e a apatia, como escravos, os modernos escravizados, vivendo à base do medo de serem despedidos, de não poderem colocar o pão na mesa. Muitos funcionários sobreviviam à base de antidepressivos e calmantes.

Quando o personagem Holden Caulfield diz: "De qualquer maneira até que achei bom eles terem inventado a bomba atômica. Se houver outra guerra, vou sentar bem em cima da droga da bomba. Vou me apresentar como voluntário para fazer isso, juro por Deus que vou" ("O Apanhandor num Campo de Centeio" - Salinger); ele não está exagerando. É só um menino bom que gostaria de viver num mundo mais humano. Mais respirável. É que os competentes estão arregaçando com tudo!

Para concluir, olha a história da humanidade. Thomas Jefferson, autor da Declaração de Independência dos EUA, segundo a qual todos os seres humanos nasceram livres e iguais, era Senhor de Escravos. Podendo mutilar, prender com argolas, surrar, humilhar, usar no pasto, na cozinha, etc, os corpos humanos. Assim como o herói da Inconfidência Mineira, Tiradentes, era detentor de pelo menos 6 escravos. Sem contar tantos outros que temos como heróis, santos, gênios.

"A humanidade se divide em duas: os senhores e os escravos. Aqueles que têm o direito de mando e os que nasceram para obececer". (Aristóteles). O filósofo era mais um Senhor de Escravos. Ou melhor: escravizador de seres humanos.