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Escrevo sobre coisas que me envergonham e que me orgulham. Como uma moeda que possui dois lados e mesmo assim é uma só.
Por um longo período eu era uma espécie de carpe diem personificado - o "aproveita o dia" -, a decadência do Império Romano; no meu caso: a decadência da minha própria vida, o meu fim. "Vivendo" como se fosse o meu último dia de vida.
Eu queria correr, fugir, encontrar um mínimo de bem-estar. Mas estava numa ilha cheia de árvores carnívoras, abismos, bichos de sete cabeças, espinhos afiados como agulhas que eu mesmo plantei, reguei e cultivei pros meus pés descalços. Jamais poderia imaginar o sorriso, a alegria contagiante e curativa das crianças. Nem me lembrava que um dia havia sido criança. Tinha perdido o prazer das coisas simples, a capacidade de sentir. Era um Jean Valjean (Os Miseráveis, Victor Hugo), um hóspede ingrato, "roubando" castiçais de uma boa alma.
Lembro-me de estar sentando no chão de um banheiro sujo, abraçado aos meus joelhos como se estes fossem os meus melhores amigos. E eu os apertava com força! Algo gemendo no peito: "O horror, o horror" - como as últimas palavras de Kurtz, personagem do romance "Coração das Trevas".
Cheguei em casa, depois de tantos dias sem dormir, consumido por drogas que fariam cadáveres correrem a maratona de Boston 10 vezes seguidas, consumido por desespero, esperando por uma bronca severa do pai, ou um velho sermão à la Lavoura Arcaica, com frases embebidas de Mandamentos, de parábolas, de profetas ou de grandes pregadores. No mínimo: uma citação do avô Joaquim.
Guardava na manga de minha camisa, que não tinha manga, uma meia dúzia de pedras para revidar os insultos mais depreciativos, humilhantes que poderia receber. Mas daquela vez não foi nada do que eu imaginei. O pai me olhou com os olhos mais tristes do mundo e perguntou: "Como você está se sentindo, meu filho?" Por essa eu não esperava. Não mesmo. Não estava no meu roteiro. Eu estava preparado pro pior xingamento, ou até mesmo prum soco na cara. Mas não por isso. Fiquei sem ação.
Choramos juntos pela primeira vez na vida. Foi um período muito difícil pra mim e pra minha família. Só Deus sabe. Fui resgatado pelo amor. Pelo amor de muita gente. Só o amor pode nos salvar. Basta querer. Tive que abandonar máscaras de ferro, tive que lamber o chão dos meus castelos, tive que abrir mão. Tive que perder, admitir minha derrota.
Tenho passado noites acordado, cuidando de minhas filhas enquanto mal consigo respirar por causa de uma gripe forte. Não sou como alguns da nossa espécie que quando questionados sobre seus "defeitos" dizem com a boca cheia: generosidade, perfeccionismo, preocupação excessiva com o outro. São seres que merecem estátuas de tão nobres que são - verdadeiros rastros de céu. E nobres também são os seus defeitos. Não os meus.
Eu continuo egoísta. Eu continuo mesquinho. Eu continuo uma reles tripa humana. Mas eu continuo tripa. Avante! Quando estiver pronto, perfeito, zero-bala, viro uma destas estátuas de um Buda gordo e risonho que vendem por aí. Não finjo ser o que não sou e que ninguém é, lá no fundo (como um pavão escondendo sua cauda).
Não tenho mais medo do ridículo porque se olharmos as coisas com a devida atenção percebemos, facilmente, como tudo, tudo nesse mundo é ridículo. E, se antes, eu vivia como se fosse o meu último dia de vida, hoje eu vivo como se fosse o meu primeiro.
Passados 22 anos sem usar drogas, especialmente drogas que transformam um cadáver em algo mais ligeiro que um Forrest Gump, comemoramos juntos o início de um novo ano... O pai, a mãe, minha companheira, nossas filhas, o meu irmão Rodrigo e eu, claro. As luzes coloridas da árvore de natal iluminando o ambiente.
Por um momento, olhei pro pai, e percebi nossos olhos marejados. Mas, desta vez, era de alegria. Ou algo do tipo. E o desejo profundo de um mundo melhor para todos nós que cá estamos.