Suzana Varjão

Tormenta digital (sobre temores ordinários na 'idade mídia')


Foto: Suzana Varjão

Pula da cama, atormentada com a quantidade de afazeres — relatórios pra finalizar, textos por revisar, projetos a elaborar, cronogramas, orçamentos, prestações de contas... Um mundo de pendências que ameaça acabar com o que resta do fim de semana e da harmonia com a namorada.

Ainda está escuro — o que significa tempo suficiente para terminar o relatório mais urgente ("tá muito atrasado"; "o chefe tá uma arara..."), antes que o Whatsapp comece novamente com o irritante blururu ("falta muito?"); blururu ("termina logo..."); blururu ("dá mais importância ao trabalho do que a mim!").

O último blururu da noite de sábado tinha sido uma sequência de carinhas enfezadas. Depois, mergulhara no trabalho, até adormecer. Bem, pelo menos deu pra descansar um pouco... Agora, é aproveitar a vantagem do silêncio e correr atrás do prejuízo.

Silêncio aliás não muito comum... Mesmo na madrugada... Tateia a mesinha de cabeceira à procura do celular e se dá conta de que, pela enésima vez, esquecera de colocá-lo pra recarregar. Paciência...

Calça os chinelos, apanha o notebook que havia acomodado debaixo da cama e segue cambaleante para a cozinha. Um cafezinho cairia bem... Melhor não perder tempo. Algumas poucas horas e será impossível se concentrar. Acende a lâmpada, liga o computador. Mal começa a escrever, porém, e a bateria arria.

Respira fundo e retorna ao quarto, arrancando, na passagem, os bilhetes fixados nas paredes ("não esquecer de carregar o celular"; "não esquecer de carregar o note"). Apanha o carregador, volta à cozinha, retoma o trabalho. Três parágrafos depois, a lâmpada apaga, o computador desliga. Parece praga.

Tic tac tic tac...

Incrível como sem energia elétrica o silêncio se agiganta, realçando certas sonoridades, como a do relógio de pêndulo fixado na parede da sala. Adora escutar os microrruídos da vida... Eis porque detesta música alta, que, como erva daninha, mata quaisquer outros sons à sua volta (incluindo os do pensamento).

Mas a falta de energia não deve demorar. Isso nunca acontece no prédio... E se for só no apartamento? Podia bater na porta da vizinha, pra perguntar, mas é muito tarde (ou muito cedo, tanto faz...). Se for no bairro todo, aí, sim, é problema. Olha pela janela. Nenhuma luz acesa no edifício em frente. Mas pode ser porque já está amanhecendo.

Tic tac tic tac...

Lembra da costureira. Gente boa, não custa ligar pra ela, mora a poucas quadras. Mas... o número do telefone está na agenda do celular. O jeito é coar um café, fritar um ovo, torrar um pão, comer algo até a bendita eletricidade voltar. Putz! Nem um fósforo na casa! (pra que, se o acendedor do fogão é elétrico?).

Tic tac tic tac...

Tem a opção da padaria, que abre de madrugada. E sabe o número de cor. Pela primeira vez, não maldiz a instalação obrigatória da linha fixa pra ativar a internet. Quem diria que esse fóssil teria utilidade algum dia... Serviço caro, sem serventia, que só toca pra tentarem meter a mão em seu bolso... Liga pro delivery, faz o pedido, espera.

Tic tac tic tac...

Pra tentar ganhar algum tempo, revisa as anotações em papel, organiza os dados... Não fosse herança da avó (mãe do pai, que nunca conheceu), atirava esse relógio pela janela!

Tic tac tic tac...

Levanta, vai ao banheiro, lava o rosto, escova os dentes, penteia o cabelo, retorna ao quarto, troca de roupa, volta pra cozinha, senta, relê os apontamentos...

Tic tac tic tac...

Lembra da velha máquina de escrever, fiel companheira de tantos anos. Seria uma salvação, nesse momento. Mas há muito tinha sido trocada por uma mais moderna (elétrica...).

Tic tac tic tac...

Soa o telefone. Se for do telemarketing...

Tic tac tic tac...

Era da padaria, avisando que o entregador não tinha encontrado gente em casa... (o interfone não tocou!).

Tic tac tic tac...

Fecha o note, cata os papéis, bate a porta. Só lhe resta a casa de um amigo. Desce, liga o carro, mas... a porta da garagem é eletrônica! Volta ao apartamento, pra procurar as chaves.

Tic tac...

Calor infernal! Ventiladores inertes.

Tic tac...

O odor da geladeira segue exalando, o tempo passando, a cabeça girando...

Tic...Trimmmmmmmmmmmmmmm!

Desperta.

(porque hoje é domingo...)