Cassiano Antico

Minha segunda mãe (e o excesso de dor que fez morada em seu corpo)


Foto: Pixabay/Creative Commons

Isadora (3 anos) chegou dizendo que o pai de sua amiguinha mora no céu. Perguntei pra ela o que era o céu. Ela me disse que era azul e que tinha nuvens e que jogava água na terra. Abracei apertado minha filha. E pensei em tanta gente que eu amo, e que já morreu, e que elas (minhas filhas) não vão conhecer. Meu avô Joaquim, minha avó Cândida, minha bisavó Julieta, meu amigo Paulo de Tharso, meu amigo Bironha, meu tio Chico. E me veio um filme inteiro, como um flashback.

 
Você pode se livrar das pessoas, porém elas marcam você até nas menores coisas
-- Jack London, em "O Lobo do Mar"

Um dia estava passando de carro por uma rua, no interior de São Paulo, onde moram meus pais, e reconheci de longe o andar de uma senhora. Tem algumas coisas que nunca mudam. O jeito de pisar no mundo é uma delas. Como uma digital. Parei o carro colado na calçada e fui cumprimentá-la. Ela havia trabalhado na casa dos meus pais por muitos anos - estava aposentada -, e eu tinha muito carinho por ela. Era como uma mãe pra mim.

Quando me aproximei, mal a reconheci. Era pele e osso, os olhos não tinham brilho, estavam distantes. Perguntei como ela estava. Seus olhos fora de órbita se voltaram para mim: "Eu estou morrendo, meu filho". Veio-me um nó na garganta, nem percebi gotas quentes em meus olhos. Só quando sua mão trêmula acarinhou meu rosto. Aí ela continuou: "Frequento há 20 anos um grupo de reza, você sabe, nunca deram atenção pra mim. Sempre fui aquela que ninguém repara, aquela que ninguém chama pra festa. Não ligo. Não vou lá por eles. Vou porque preciso rezar para suportar. Vou porque acredito em Cristo. Mas foi só eu falar que estava com câncer espalhado pelo corpo todo que eles até me aplaudiram, me beijaram as mãos, me deram o microfone. O que que eu tinha pra dizer pra eles? O que, meu filho? Agora querem me arrumar pras festas com batom e tudo. Eu, esta velha morta."

Então calou-se. Seus lábios estavam brancos, sua boca mexia como se estivesse rezando. Só Deus e ela sabiam o que se passava dentro daquele corpo. Não me atrevo. Lembrei de períodos, não tão distantes, de nossa história, quando o passatempo preferencial de lacaios, famílias de bem, rezadeiras de novenas, gamelas públicas, mendigos, bichos de estimação de toda sorte, padres, prostitutas, capitães de cavalaria era assistir um condenado ser decapitado em praça pública ou ser flagelado peremptoriamente. A multidão aplaudia, e a criançada dava risada enquanto a cólera do carrasco se expandia sobre o corpo humano partido em dois.

Enfim, levei minha segunda mãe pra casa com essa imagem no retrovisor. Eu podia até ver aquela turma que nunca a percebera, que nunca lhe dera atenção, que nunca a chamara pra comer um ínfimo pedaço de bolo, agora, alí, batendo palmas pra ela, pro câncer que se alastrava, passando-lhe batom na boca modorrenta.

Conversamos um pouco. Eu a visitei várias vezes - ela até quis me dar um presente de casamento.  Falei que não precisava. Ela insistiu: "Só porque eu sou pobre, você não aceita?" Disse que era ela quem mandava. Deu uma porrada de fraldas pra Valentina que crescia na barriga da Ju. Alguns meses depois estava morta.

O excesso de dor, como o excesso de alegria, é algo violento, que dura pouco. O coração humano não suporta ficar muito tempo num extremo. E a dor havia feito do seu corpo sua morada eterna. Lutou até o último assalto no ringue dessa vida. Tinha um sorriso tão bonito, acolhedor. Sua comida apaziguava qualquer desassossego. Se colocássemos dois briguentos, um de frente ao outro, e trouxessemos um de seus pratos deliciosos, com certeza, ao final da refeição, eles estariam abraçados e rindo como bons amigos. "As criaturas mais simples entendem o bem e o mal de um jeito simples. O bem é tudo aquilo que traz alívio, satisfação e o fim da dor. Portanto, o bem é desejado. O mal é tudo aquilo que desconforta, ameaça e machuca, e é odiado por isso".  (Caninos Brancos – Jack London).

A comida era feita com carinho, paciência e acima de tudo: amor. Ficou em São Paulo comigo por uns tempos, me ajudando na casa. Dei "O Velho e o Mar" (Hemingway) pra ela ler. Leu numa tarde e disse: "Eta veinho porreta". Assim era ela... Uma mulher de muita fibra. Criou sozinha os filhos, os netos. Sofreu perdas terríveis, inimagináveis nessa vida. E seguiu em frente. Não como quem berra e expõe as feridas em praça pública. Mas como quem canta "Let Your Light Shine on Me" enquanto leva um soco de Godzilla que a vida nos dá na nuca. Gostaria muito que tivesse a oportunidade de conhecer minhas filhas. Quem sabe um dia. Em outro lugar, numa estrela, numa nuvem, num sonho. Ou no céu onde mora o pai da amiguinha da Isadora.

 
Sem crueldade não há espetáculo
-- Friedrich Nietzsche

Nosso mundo gasta muita energia se alimentando da dor, da tristeza, da miséria dos seus semelhantes.