Escritos

O estado das coisas no picadeiro

Publicado na Antologia 'Poética no Divã' (Editora Mente Aberta, 2018)

Foto: pxhere/Creative Commons

O que sou, quem sou eu? Um rito de passagem, o olhar de contemplação da morte do agora, a profusão de ideias vastas, gastas, um ser que foi moldado num barro, queimado, esculpido e cuspido pelos medos, os menos e os meios, castrado pelas palavras-foices e enquanto sangravam o meu atestar, nascia uma vontade de procriar, de fazer brotar de mim o novo, o pleno.

Eu verbo a conjugar, mas ainda existia o querer dos outros, a vontade de alguém se sobrepondo a mim, eu então era cão a ser levado, lavado, secado, não faz isso aí, não vai por este caminho, não tome chuva, não brinque com fogo, assim você vai se machucar e todas as limitações deles.

Vejo-me vendo de fora e neste circo sem lona tudo parece bem certo, encaixado, mas se o macaco puxar o rabo do leão e este rugir, as zebras irão se assustar e correrão em disparada, derrubando a foca equilibrista e as bolas equilibradas cairão e farão a bailarina contorcionista tropeçar ou quem sabe as pulgas se rebelarão e farão a festa, tudo por um fio, assim que vejo, um equador entre o estável e o caos, mas não seria o caos a base da estabilidade? Pouco sei das castas anteriores, apenas eu numa cesta qualquer e mãos me adornando, adorando, apalpando. Em quem haveria de se tornar esse menino? Que riso ele traria depois que percebesse a ferocidade das coisas, dos gestos, das pessoas?

Levou tempo, na verdade vem levando, levando tempo, e cada bicho que se apresentou, tentativas infelizes de adestramento. Não cabendo em si com tamanha ferocidade, chicotes não dando jeito, apesar de todo choro e soluço, foi numa tarde, uma tardezinha qualquer, enquanto os olhares vigiadores e vingadores se debruçavam sobre o momento palhaço, tomou para si as facas do engolidor destas e os bastões de fogo da malabarista, subiu ao picadeiro e chamou para si toda a responsabilidade e atenção.

O garoto apostou em um número só seu, dificuldades que poderiam lhe levar a morte facilmente e pôs o pé direito sobre a corda, ainda titubeou, mas a gosto do novo, do imprevisível, do risco já lhe atiçara o sangue e o segundo pé seguiu adiante, facas e bastões fumegantes lançados ao ar, o suor lhe correu as têmporas, um silêncio ensurdecedor na plateia boquiaberta. Cada passo e lançamentos acompanhados com os olhos de medo, pavor, receio. Alguns fechavam os olhos na tentativa de evitar o inevitável.

Os circenses viam por um fio o menino. O menino via por dois lados todo o povo. Um desequilíbrio, e uma faca caiu. Depois um bastão incendiário. Mas ele se manteve trêmulo, sobre a linha tênue. Ao chegar do outro lado, viu-se tão eufórico quanto certo. As pessoas, todas de pé, gritavam, batiam palmas, assoviavam. O garoto ria e agradecia.

Do lado que estava via as coisas ao seu modo. Seu nome foi repetido em alto e bom som diversas vezes e haviam aqueles que pediam bis. Ele se jogou na rede, deu cambalhotas, reverenciava o público. Abaixo estavam em choque todos aqueles que o viram crescer, mas que ainda não tinham visto o seu tamanho.

De que tamanho eu sou? Quem sou eu neste circo? Ainda não consegui a definição. Sei que o teto do circo é o céu, que hoje estou a vender pipoca na arquibancada, ontem alimentei os leões e amanhã, ah! O amanhã é só amanhã.