Foto: Suzana Varjão
Desperta com o ranger do assoalho no andar de baixo do velho sobrado. O relógio de cabeceira marca 4h20 da madrugada. A farra domingueira com familiares e amigos acabara ao anoitecer, e todos haviam se retirado. Não há, portanto, ninguém, além dela, na casa. Coração acelerado, senta-se na cama e apura os ouvidos.
O chiado característico do atrito de madeira contra madeira denuncia o abrir e fechar de gavetas no quarto de hóspedes abaixo do seu. São movimentos furtivos, de quem procura por algo que não sabe o que é, não sabe onde está, não lhe pertence, mas que irá obter, mesmo que para isso tenha que matar.
Sente-se desfalecer, ante a visão da arma apontada para a cabeça — o temor da família tornando-se realidade, morta por causa de alguns trocados e eletrodomésticos, quem sabe torturada pra confessar onde está o dinheiro, onde estão as joias, onde estão as armas, quando não submetida a não sei que sorte de abusos.
Um leve ringir de portas e trincos sugere o deslocamento do intruso para o outro dormitório do térreo. Com certeza vasculhará todos os cômodos, até chegar ao seu, aí será tarde, precisa tomar alguma atitude, tem um .38, mas está no quarto ao lado, se andar sobre o tabuado, ele vai perceber...
Comprara a arma por conta dos riscos da profissão, mas só a usara seis ou sete vezes, nas aulas de tiro. Tinha ótima pontaria — elogiavam os instrutores —, mas na vida real é outra coisa... Pra que inventara de morar sozinha naquele ermo à beira-mar, contra todo bom senso, todos os conselhos, romantismo idiota de querer se isolar pra escrever...
Com certeza ele agora está na cozinha. O ruído é de porta de geladeira, deve estar com fome ou sede. Ou com ambos. Essa é — ou era — uma das características dos ladrões do lugar: invadir redutos de veranistas, na certeza de não estarem ocupados, comer e beber à vontade, furtar o que podiam e voltar pra suas casas, nas cercanias menos prósperas.
Mas eles estavam ficando ousados. E armados. Parecia não mais haver o cuidado de checar se as casas estavam vazias, e os arrombamentos resultavam, muitas vezes, em tragédia, provocando a reação da comunidade, com os mais radicais propondo medidas drásticas contra a escória doméstica — caçar, esfolar, despejar em cova rasa.
Defendia outros métodos, o melhor era prevenir, colocar alarmes e trancas nas portas e janelas, deixar sempre uma luz acesa à noite, para sinalizar a presença do dono, etc., etc. A boca está seca... Daria tudo por um copo d´água... Mas o que teria feito de errado? Qual teria sido seu descuido?
Ficara um pouco bêbada, mas lembra-se de ter fechado portas e janelas e ido dormir... Antes... sim... antes tentara tomar um banho, mas havia faltado água, o que era comum, nos finais de semana, naquela zona praieira. Subira para ligar a bomba da água do poço, no quadro de eletricidade instalado, por medida de segurança, no andar de cima, e...
Mas que importância tem isso, agora? Fosse qual fosse o vacilo — e a luz apagada era um —, o resultado estava ali, na sua cozinha. Precisa agir, rápido. E não pode perder a chance. Esgueira-se para o chão e arrasta-se lentamente até o quarto contíguo. Tateia a prateleira da estante à procura das chaves da gaveta na qual guarda o revólver...
— Creck... creck... creck...
O ruído nos degraus da escada de acesso ao segundo andar provoca nela uma sensação de vertigem, acompanhada por um zumbido nos ouvidos e uma compressão na boca do estômago. É noite de lua cheia, e as réstias de luz que escapam pelas frestas das telhas permitem vislumbrar um vulto encapuzado crescendo, crescendo...
Já não importa tanto cuidado. Em fração de segundos, agarra a chave, destranca a gaveta, empunha a arma e a aponta para a porta. Quando a sombra se agiganta na entrada do quarto, ela atira uma, duas, três, quatro, cinco vezes, e continua atirando, atirando, atirando, mesmo depois que os estampidos transformam-se em cliques fracos e sem clarões.
Permanece no chão, arfando, o corpo do invasor estendido a pouco centímetros, até que recobra as forças, levanta-se, acende a luz. Vê os pés descalços; o dorso, nu. Da mão direita, semiaberta, pende uma saboneteira. Hesitante, afasta a toalha de banho que cobre a cabeça e o rosto do inimigo abatido e depara-se com os olhos perplexos e já sem brilho do irmão.
(porque hoje é domingo...)