Cassiano Antico

O dia em que acabei com a Paixão de Cristo

Lembrança que veio com a imensidão do mar


Foto: pxhere/Creative Commons

O mar está a alguns metros de mim enquanto escrevo. Ouço o seu barulho. Isso é paz. Fiquei dentro dele por mais de duas horas com minhas filhas. Perdi a conta de quantas ondas enfrentamos, de quantas conchinhas pegamos, de quantas Barbies enterramos na areia. Do meu ponto de vista: ondinhas. Do ângulo de minhas filhas: ondas gigantes, ondas havainas, verdadeiros tsunamis.

 
Um homem pode ser destruído, mas não derrotado
Ernest Hemingway

Elas continuam brincando na areia  com seus baldinhos, na caça de mais conchinhas, desentarrando as Barbies como os cães cavam a terra fofa, construindo castelos de areia  que o mar vai levar embora. E eu estou aqui, quase desfalecido, no computador, apreciando tudo isso.

E penso nessa imensidão que é o mar. Já o velho do mar de Hemingway pensava sempre no mar como sendo la mar, no feminino. Que é como é chamado em espanhol. Se o mar fizesse coisas selvagens ou cruéis era só porque não podia evitá-lo. “A lua afeta o mar tal como afeta as mulheres”.

Assim é a mulher, que dá a vida, o alimento, que para que haja a separação do cordão umbilical só com faca ou tesoura. A mulher que representa tanto a força quanto a beleza, e que é repleta de abismos indecifráveis que nem um Chico Buarque e nem um Dom Juan  ousam mergulhar inadvertidamente  em seus recônditos.

Associo a mulher e o mar ao oxigênio. E que Gilberto Gil traduziu de maneira impecável na canção "Super-Homem": "Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara / É a porção melhor que trago em mim agora / É o que me faz viver." Só pude descobrir vivendo com minha mulher e nossas duas filhas. 

Não se aprende na escola, na universidade, no curso de MBA. Lá podemos aprender as coisas do mundo de fora como astronomia, matemática, gramática, letras, palavras, técnicas de redação, formas de obter lucro. Mas as coisas que moram do lado de dentro da gente, como escreveu Rubem Alves, estão enterradas na carne.

Uma dessas coisas seria a “solidariedade”, ou a empatia. A solidariedade não é uma coisa do mundo de fora, ao lado de estrelas, pedras, mercadorias, dinheiro, telefone. É do mundo interior. Solidariedade nem se ensina, nem se ordena, nem se produz. Senão a gente faria uma fábrica de solidariedade e o mundo tomava jeito. Trata-se daquelas coisas sutis. Não dá pra meter um coturno, uma farda, pintar o cabelo, jogar uma metralhadora na mão e mandar marchar: E eis um solidário! Não! Ao menor sinal de domínio, maldade, pose: nós a matamos.

Porque como escreveu T. S. Eliot: “Num país de fugitivos os que andam na direção contrária parecem estar fugindo.”  Hoje em dia estar congelado, estar dormindo na franja da onda: parece ser a via única, a seta do mundo. Mas não a que nossos pés, muitas vezes, conseguem pisar, ou nossos narizes conseguem respirar. Porque seria o mesmo que pisar num irmão ou servir-se de mentiras e de pessoas covardes para se arrastar mundo afora...

Como escrevi no meu livro "Fratura Exposta", ia começar a primeira série. Eu devia ter uns seis anos. Era uma montagem da "Paixão de Cristo". As pessoas assistiam a apresentação dos alunos da quinta série. O auditório estava cheio. Todos os pais orgulhosos de seus rebentos. Tinham improvisado um palco grande. Não conseguia entender como ninguém fazia nada com aquele que havia traído seu amigo. Ninguém da platéia reagia. Eu não sabia a diferença entre plateia e palco. Hoje tudo, tudo é palco. Naquela época ainda havia uma certa divisão.

Todos olhavam com aquele olhar de peixe morto. Ninguém movia uma palha. Pior: pareciam gostar, gostar muito daquilo. Como se aplaudissem com os olhos as agressões, a tortura. E o "Homem" apanhava covardemente. E foram batendo, batendo inclusive com objetos nele. E eu estava muito triste. Paguei um mico gigante. Subi no palco e fui atrás do Judas e tentei pegá-lo. Ele já estava no que seria o camarim.

Seguraram meu corpo franzino. Eu chorava de raiva. Riram de mim. Tentaram me fazer parar de chorar para não pegar mal. "Deus acima de todos", lema muito anterior à Santa Inquisição. Que bizarro!

As lágrimas secaram na minha cara. Senti vergonha deles e depois morri de vergonha de mim. Eu acabei com aquela peça. Mas, intimamente, sabia que já havia feito a minha escolha.

A seta mandava todo mundo numa única direção, como gado. Eu tinha apenas seis anos - ofereceram-me carona -, não aceitei. Eu já estava indo pro outro lado.