Suzana Varjão

A escrava (o insustentável peso de uma guerra de raças)


Foto: Suzana Varjão

Ante a sensação de asfixia, puxa com força o ar pela boca. Um queimor alastra-se pelas narinas, garganta e peito, provocando acessos de tosse e ânsias de vômito. Quando consegue dominar a respiração, entreabre os olhos. Aos poucos, o que eram borrões oscilantes dão lugar a linhas e cores mais nítidas, até que vislumbra o rosto de um homem.

— Acorda, vadia!

Diante dos seus, os olhos vidrados de Manoel — sua barba mal aparada e suja; o pedaço de palha deslocando-se lentamente de um canto a outro dos lábios; o chapéu de abas largas, as botas de cano alto, a garrucha e... o bacalhau, chicote maldito que lhe rasga a pele, causando dor tão extrema que, às vezes, o cérebro desliga, como agora.

Recobra a memória da surra, mas não do porquê de ter sido arrastada pelos cabelos, amarrada e açoitada, logo ao nascer do dia. Deve estar ali há pelo menos umas dez horas, porque já não há raios de sol furando o sapê do galpão, pobremente iluminado por uma luz difusa, meio morta, como ela.

Tenta mover-se, em vão. Os pulsos estão amarrados tão no alto do tronco que os pés mal tocam o chão de terra batida. Encharcada, com as roupas rasgadas, coladas ao corpo, tirita de frio, e uma ardência indizível castiga-lhe as costas e nádegas. É como se não tivesse pernas, tomadas por um formigamento torturante...

— Perdeu o orgulho, negrinha?

Lançada entredentes, a pergunta é acompanhada por mais uma chibatada. Dura como pedra, a ponta do chicote de couro cru lambe-lhe o dorso e atinge, de raspão, o lado esquerdo de sua face. Não tem certeza se grita, se geme... apenas que vai desmaiar outra vez, mas... tem que reagir... precisa manter-se desperta...

O negro Firmino surge de súbito e sussurra algo no ouvido do feitor, que cessa o movimento do braço — prestes a desferir nova lapada —, chuta o tacho d´água, sibila um aviso-ameaça ("eu volto...") e sai, passo apertado, grunhindo palavras inaudíveis e brandindo o chicote na direção do moleque de recados.

O que estará acontecendo? Alguma revolta... Mas o que ela tem a ver com isso? Nunca deu ouvidos a cochicharias sobre rebeliões, quilombos e que tais... Aconselhava mesmo Sebastião a não se envolver com esses assuntos... Tinham uma vida boa, apesar de tudo. Era protegida da casa-grande, e o protegia...

É coisa séria... Manoel não teria o topete de machucá-la dessa forma se... Sebastião! Claro! Devem ter descoberto... Seu Bastião... A essa altura, já deve tá morto... ou castrado! É isso... Se fosse só fuga de negro, tinha pelo menos uns cinco ali, no castigo, pra confessar o que sabiam e o que não sabiam...

Esse cheiro de mandioca assada... A última vez que pôs alguma coisa no estômago foi ontem à noite, depois que sinhozinho saiu da cabana... Será que ele viu Bastião entrar? Sabia que negra que caísse na vontade de seu dono tinha que se comportar, mas já era de Bastião muito antes de nhô Feliciano começar a se servir dela...

Bastião ficou de banzo quando aquilo começou. Mal comia, quase não dormia, passava horas ruminando pelos cantos da fazenda, sem disposição pra nada... Foi quando começou com aquela ideia fixa de se embrenhar no mato, entrar pros acampamentos onde negro — diziam — tinha vida de rei.

Mas o tempo foi passando, ela argumentando, chamegando, e as querências arriscadas, diminuindo. Pensou que Bastião havia, afinal, se convencido de que tinha uma parte boa naquela situação. A lida dele tava mais leve, e ela não precisava mais tolerar Manoel, se esquivar de suas mãos pegajosas, aturar aquela mendicância obscena...

Se ao menos pudesse beber um pouco d´água... Não sabe o que é pior, se a fome ou essa secura sem fim...

— Mais um tapinha?

Lembra-se do aviso-ameaça e sente um calafrio.

— Você tá bem?

— Quê?

— Tá tremendo...

Observa demoradamente a brasa do cigarro rente ao seu rosto e cai em si.

— Viagem ruim?

A voz, feminina e cálida, vem de uma face serena com olhos de maresia que a fitam e sorriem.

— É...

(porque hoje é domingo...)