Suzana Varjão

Travessia (ou a imprevisível jornada da desesperança)


Foto: Suzana Varjão

Ao deixar a aldeia, o sol ainda dormia, e agora estava prestes a se recolher outra vez. Mal havia se movido, durante o longo trecho da travessia, mas não sente fome, sono, sede ou frio. Apenas torpor. E infinita ternura pelo bebê que carrega nos braços, decorrência de noites furtivas, repletas de descobertas, prazeres e juras de amor que ela revive incontáveis vezes, dia após dia.

Conhecera Zeca na praia, durante uma pesca de arrastão. Acocorada, gestos quase mecânicos, catava os peixes, moluscos e crustáceos presos à malha da rede, quando escutou uma voz grave oferecer ajuda. Levantou a cabeça disposta a enxotar o intruso, mas desconcertou-se ante um par de olhos negros, serenos e fundos, que provocaram nela sensação física nunca experimentada — ou imaginada.

Daquela manhã em diante, tivesse pescaria ou não, corria para a beira-mar, e lá o encontrava, ora sozinho, ora com camaradas — dispensados tão logo a avistava. O pai percebeu motivo e pivô dos rubores, escapadelas, sobressaltos, distrações. Aconselhou primeiro ("afasta desse cabra"... "ninguém sabe direito quem é, de onde vem..."), ameaçou depois ("se continuar, passo o facão nele, jogo no mar...").

Em vão.

Os encontros passaram a acontecer à noite; os tímidos sorrisos se transformaram em beijos ardentes; leves toques de mãos, braços e pernas evoluíram para o roçar de corpos, o esfregar de sexos; suspiros deram lugar a gemidos; desejos viraram gestos... e um dia um grito misturou-se ao marulhar das ondas, um gota de sangue tingiu a areia, uma sorte foi lançada; um destino, selado.

Agora está ali, cortando as águas — meio rio, meio mar —, com uma criança nos braços, um machucão na alma e um monte de interrogações na cabeça. Quem sabe o menino não encontra melhor sina do que aquele puxar sem fim de rede, aquele cheiro de peixe que impregna os ossos, o eterno gosto de sal? Quem sabe o tempo não empalidece a memória daquele amor turbulento e fugaz, e ela retoma a vida de onde parou?

Onde estariam? Não vira o pai desde que ele a expulsara de casa, tão logo a barriga começou a inchar — evidência do crime, difícil esconder. Não fosse a dona da peixaria, teria ficado ao relento, virado mendiga ou comida de lobo-guará. Dona Zenaide garantiu manter emprego e abrigo, contanto que entregasse o bacuri, ainda recém-nascido, a um casal seco e rico, que o criaria como seu.

Seria capaz de esquecê-lo, como sua mãe o fizera, deixando-a, ainda enrugada, na porta da sede da colônia e sumindo no mundo pra nunca mais dar notícia? Que caminhos tomara aquela mulher sem rosto e sem dó? Dizem que foi por ela que o pai nunca mais voltou ao mar — no coração, a esperança de um dia sabê-la esperando por ele no cais do vilarejo situado entre a aldeia de pescadores e a cidade grande, para onde ela agora se dirigia.

Mais algumas horas e chegará ao porto intermediário, pegará o catamarã, desembarcará na capital, entregará o garoto...

Do manguezal que margeia o trecho final do trajeto, desprendem-se folhas amarelas, que se misturam ao rastro branco deixado pelo motor — véu de espumas salpicado de pingos dourados, como o que jamais usará, contrariando os planos traçados com o boto de água salgada, que a seduzira e se fora, tragado pelo mar.

Nunca prestara atenção aos detalhes dos relatos sobre sua vida — de onde viera, por que viera, por que tinha que partir... Fora do alcance das vistas severas do pai, conversa era desperdício, e daqueles lábios carnudos só lhe interessavam os beijos, as carícias obscenas, os sons do prazer. Por isso, levou um susto quando ele anunciou "tô indo / me espere / volto logo / venho te buscar"...

Lembra de ter permanecido horas a fio no atracadouro, atordoada com a torrente de palavras, depois de ver a barca sumir, levando seu homem, que nem ficou sabendo da existência daquela marca de amor... Uma marca que em breve também desaparecerá, levada por esse mesmo caminho d´água...

Já não escuta o ronco do motor da lancha.  O ruído contínuo, invariável, anestesia os sentidos, libertando a mente, os medos, as amarras... E uma ideia vai tomando corpo dentro dela, enquanto nas franjas brancas de areia a paisagem inerte se repete, indefinidamente, com seus barcos, suas redes, velas, cachos de dendê...

Atracam.

O catamarã despeja os passageiros vindos da capital e prepara-se para receber os que para lá seguem. Mas ela não continuará a viagem. Não fará do que restou do melhor momento de sua vida de insignificâncias um pacote a ser despachado. Aperta o filho contra o peito e afasta-se do cais, rumo às falésias que limitam o oceano.

Do alto de um dos penhascos, observa pela última vez a face rosada do pequenino — os mesmos olhos mansos, as pestanas cerradas, o sorriso...  Fixa a vista no mundão de água azul turquesa e sente-se em paz, pela primeira vez em tantos meses. Uma rajada de vento arranca a manta que os protegia do frio, que flutua, enquanto...

— Maria! Maria! Maria!

Vira-se na direção do chamado, identifica o dono da voz, e sente o chão abrir-se sob seus pés.

Zecaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!!!!!

(porque hoje é domingo...)