Foto: Suzana Varjão
Enquanto espera o trem que a levará à Dinamarca, lê as últimas manchetes sobre os atentados que sacodem a Europa. Tentara não se contaminar com o clima de apreensão que antecedera a saída do Brasil — os relatos sobre o recrudescimento do terrorismo na região, as recomendações de segurança, os conselhos para cancelar a viagem...
Mas como desperdiçar tamanha oportunidade? Quase não acreditara quando ouvira o número 56, o último de sua cartela — o bingo beneficente dos domingos convertido em alegria, perspectiva de sacudir o cotidiano de cidadã-nível-mínimo, cruzar os céus, conhecer outros lados do mundo, tocar a neve.
E até aquele instante, não tivera motivos para sobressaltos. Experimentara uma Suíça condizente com as análises políticas e a propaganda turística — um oásis em meio a homens-bomba, tiroteios, atropelamentos e outros métodos usados nos massacres perpetrados por representações da onipotência do mal.
A calmaria da estada de uma semana a animara a prolongar a aventura, conhecer a charmosa terra das bicicletas, banhar-se na luz dourada de seu outono, encarar seus corvos, tragar sua liberalidade... E ali está ela, rumo a Copenhague, uma extravagância que valia cada centavo economizado ao longo de tantos anos.
Mas a iminência da travessia reavivara nela a geografia do medo, instigando a busca por informações, que contrastam com a tranquilidade de até então — a insensatez fazendo vítimas na França, na Espanha, na Tunísia e na Alemanha, que ela ora cruza, de um extremo a outro, para alcançar o destino pretendido.
E as notícias sobre o país são inquietantes. O terrorismo havia acirrado a xenofobia e a intolerância no território, que mergulhara em uma onda crescente de ataques racistas semelhantes aos ocorridos após a queda do muro de Berlim, com estrangeiros sendo perseguidos e assassinados nas ruas — fossem imigrantes ou turistas.
Apesar de a tensão nas fronteiras ser mais elevada, cascas de ovos de serpentes estavam sendo rompidas em diferentes pontos do estado alemão, liberando um neonazismo feroz e confuso, com antifascistas sendo brutalizados e mortos por forças de segurança que deveriam reprimir os nazifascistas.
***
Um silvo de trem interrompe a leitura, as divagações, e ela se dá conta de que a estação já não está deserta: de todos os lados brotam soldados. Uniformes verde-musgo, quepes, coturnos... Parecem preparados para uma batalha. Chegam e enfileiram-se na plataforma, à espera da locomotiva — a mesma que ela aguarda.
A máquina se abre, ela embarca, busca o assento mais reservado possível, acomoda-se, aguarda. Quando partem, levanta as vistas. A maioria dos militares cochila; parte arruma pertences nas mochilas, idênticas, empilhadas nos bagageiros; outros travam conversas animadas — algumas, pelos trechos, sobre estratégias de guerra, vitórias e derrotas.
Sente um calafrio.
Quase não há civis nos vagões, pontilhados de cabeças semirraspadas e faces brancas, quase tão lisas quanto de moças, o que sublinha a dessemelhança de sua pele cor de jabuticaba e seus cabelos longos, trançados no estilo rastafári — por ironia, para afirmar a resistência étnico-cultural em sua terra.
São garotos como os que, há poucas décadas, detinham o biopoder* máximo, de fazer morrer ou deixar viver; que em trens iguais àquele caçavam judeus, negros e outras "desestabilidades" sociobiológicas como quem caça feras; que, com um simples olhar, julgavam e condenavam à morte os que não se enquadrassem no ideal ariano.
O que teria provocado o deslocamento daquelas tropas? A serviço de que vozes estariam? Das que defendem as "fronteiras abertas" ou das que querem a "Alemanha para os alemães"? Quem seriam os "outros" daquele momento, daquela ação? Mas antes que possa formular conjecturas, sente uma mão pousar em seu ombro e escuta um chamado.
— Senhora!
É como se a cena à sua volta tivesse sido pausada: os movimentos cessam; os sons fogem; as imagens perdem a nitidez. Contrapondo a inércia da ambiência externa, o tumulto do corpo — coração acelerado, olhos embaçados, têmporas latejando, mãos trêmulas, pelos dos braços e das pernas eriçados...
Vira-se na direção do interpelante e pousa os olhos sobre suas botas impecavelmente lustradas; o vinco perfeito das calças; o cinto de couro preto, os botões prateados da camisa azul-celeste; a gravata... afrouxada; o pomo de adão; o queixo retangular e... os lábios, semiabertos em sorriso.
— Aceita um chucrute?
A banalidade da pergunta reconduz seu olhar para o entorno. Relaxados, os rapazes formam grupos e dispõem-se a beber, jogar dados, tagarelar... Nada que fuja ao comportamento de jovens triviais. Pelo ex-futuro detector de "poluição racial", é informada de que se tratam de alunos de um colégio militar, voltando pra casa, após excursão pedagógica...
(porque hoje é domingo...)
* [conceito do filósofo Michel Foucault, que define a prática do Estado Moderno, de controlar as pessoas subjugando seus corpos]