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Segunda-feira minha filha Isadora amanheceu com escarlatina. Só conhecia essa doença pela música "O Pulso", da banda Titãs.
Febre, manchas na pele, nada grave. Mas estava bastante amuada, querendo colo. Não fotografei, não fiz selfie, não filmei. Não quis expô-la num Instagram da vida. Pareceu-me um sacrilégio tal atitude.
É que quando olho pra minha filha, vejo um oceano de generosidade inexorável, incorruptível. O mesmo tipo de bondade que li e vislumbrei nas biografias dos santos. Mas superior: porque a inocência é mais sublime do que a virtude.
Vejo algo decente até as últimas consequências. Como nos cães. A delicadeza com que Dodó acaricia um animal, o jeito que dá comida pra tartaruga, a maneira carinhosa que me acorda falando baixinho e me acariciando os cabelos. Ela só tem 3 anos. Ela acredita que o mundo inteiro é bom.
Hoje choveu um universo aqui em São Paulo. A chuva: a única ligação entre o céu e a terra. Você pode pensar que a chuva cospe em você (caso tenha acordado com o pé esquerdo), como pode dançar debaixo dela, ou correr, ou jogar bola. Não dancei, não joguei bola, não corri.
Tinha acabado de sair de um compromisso e fui buscar minhas filhas na escola - caminhando debaixo d'água -, sem pressa. É perto, e a chuva vinha com bastante apetite de nós terráqueos. Deixei cair tudo em mim. Toda chuva possível. Não fazia isso há muito tempo. E como me senti bem. Até minhas meias encharcaram - e percebi um vento frio no cangote. Não era o bafo da morte...
Notei-me vivo e alagado como nunca! Minhas filhas riram ao ver o pai naquele estado "aquático". Queriam também. Liberei um pouco.- entrei mais um tantinho com elas na chuva -, porque Dodó está se recuperando. Pegamos um Uber.
Em casa: banho quente com música e muita comida. Hoje entendo minha avó: "Passaram num piscar de olhos, filho" - disse ela ao completar 80 anos. E me disse mais: "Sabe, filho, dizem que eu tenho tudo isso. Está na minha cara, né? Mas eu não me sinto tão velha assim".
E imagino minha avó criança sem a mínima noção de onde o barco iria chegar. E imagino minha avó brincando com outras crianças. Quais seriam seus sonhos? Quando ralou o joelho pela primeira vez teria chorado? Sofreu muitas decepções? Pensou em morrer? Foi traída pela melhor amiga? O que teve que suportar de pior nessa vida? O que mais a magoou?
Porque as avós não contam essas coisas pra gente, né? E, dependente da geração: nem as nossas mães. E penso no mundo de hoje. O mundo está mudando. E sinto que pra pior.
No espaço da imaginação: tudo era permitido. Tudo podia ser pensado. Tudo podia ser imaginado. E até criado. Inclusive nas adversidades, na raça. O que a gente não podia no mundo, a gente podia na escrita, na música, na pintura, nas artes, nas paredes.
Uma banda chamada "Os Mutantes", uma canção de nome "Metamorfose Ambulante". Outra banda: "Camisa de Vênus".
A gente podia o impensável. Mas as máscaras moralistas, racistas, fascistas estão podando até a nossa imaginação. Parece que "O Sonho Acabou", mas não foi com "Roupa Nova". O passado é uma roupa que não nos serve mais.
Vão tomar no olho da chuva, pô!